28 de janeiro de 2016

Os prediletos de Bowie

Em 2013, o finado melhor-ser-humano-do-universo David Bowie publicou uma lista com seus 100 livros prediletos. A lista foi ressuscitada este ano, em ocasião da sua morte. Tanto à época como agora, vários jornais e blogues brasileiros reproduziram-na, mas nenhum publicou os títulos existentes em português. Por interesse pessoal, como fã confesso do camaleão, tomei a mim este trabalho e aqui o reproduzo.
É uma lista interessante que traz clássicos da literatura universal, novelas lados B, livros de magia e ocultismo (fixação de Bowie desde sempre) além de vários títulos sobre política, crítica artística e psicologia. Bowie, que reza a lenda lia um livro por dia teve na literatura uma de suas inspirações artísticas e pessoais. Para além de curiosidade admiradora, a lista permite compreender melhor a obra deste mito dos séculos XX e XXI.


1 Ilíada Homero 800 a.C.
2 A Divina Comédia: Inferno Dante Alighieri 1308
3 Zanoni Esward Bulwer-Lytton 1842
4 Madame Bovary Gustav Flaubert 1856
5 Os Cantos de Maldodor Lautréamont 1869
6 Dogma e Ritual da Alta Magia Eliphas Lévi 1896
7 McTeague - Uma História de São Francisco Frank Norris 1899
8 BLAST Wyndham Lewis 1914-1915 *** (Revista)
9 Terra Desolada T. S. Elliot 1922
10 O Grande Gatsby F. Scott Fitzgerald 1925
11 O Amante de Lady Chatterley D. H. Lawrence 1928
12 Passing Nella Larsen 1929 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
13 Berlim Alexanderplatz Alfred Döblin 1929
14 Paralelo 42 John dos Passos 1930
15 Enquanto Agonizo Willian Faulkner 1930
16 Corpos Vis Evelyn Waugh 1930 SOMENTE EDIÇÃO PORTUGUESA
17 A Ponte Hart Crane 1930 SOMENTE EDIÇÃO PORTUGUESA
18 Infants of The Spring Wallace Thurman 1932 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
19 English Journey J. B. Priestley 1934 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
20 Mr. Norris Muda de Comboio Christopher Ishewood 1935 SOMENTE EDIÇÃO PORTUGUESA
21 O Caminho Para Wigan Pier George Orwell 1937
22 The Beano
1938 - *** (Comic)
23 O Dia do Gafanhoto Nathanael West 1939
24 O Estrangeiro Albert Camus 1942
25 The Portable Dorothy Parker Dorothy Parker 1944 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
26 Black Boy Richard Wright 1945 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
27 A Rua Ann Petry 1946
28 1984 George Orwell 1948
29 Lolita Vladimir Nabokov 1955
30 O Outsider Colin Wilson 1956
31 A Grave for a Dolphin Alberto Denti di Pirajno 1956 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
32 Almas em Leilão John Braine 1957
33 Nova Técnica de Convencer Vance Packard 1957
34 Pé na Estrada (On The Road) Jack Kerouac 1957
35 O Leopardo Giuseppe Di Lampedusa 1958
36 Billy Lear Keith Waterhouse 1959 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
37 All The Emperor's Horses David Kidd 1960 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
38 O Eu Dividido R. D. Laing 1960
39 Strange People Frank Edwards 1961 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
40 Silence: Lectures and Writing John Cage 1961 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
41 On Having No Head: Zen and Rediscovery of the Ovbious Douglas Harding 1961
42 Private Eye
1961 - *** (Revista)
43 A Primavera da Srta. Jean Brodie Muriel Spark 1961
44 Como Morrem os Pobres e outros ensaios George Orwell 1962
45 Laranja Mecânica Anthony Burgess 1962
46 Da Próxims Vez O Fogo James Baldwin 1963
47 O Marinheiro Que Perdeu as Graças no Mar Yukio Mishima 1963
48 The American Way of Death Jessica Mitford 1963 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
49 Puckoon Spike Milligan 1963 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
50 Herzog Saul Bellow 1964
51 As Cidades da Noite John Rechy 1965
52 A Sangue Frio Truman Capote 1965
53 Última Saída Para o Brooklyn Hubert Selby Jr. 1966
54 Journey into the Whirlwind Eugenia Ginzburg 1967 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
55 O Mestre e a Margarida Mikhail Bulgakov 1967
56 Awopbopaloobop Alopbamboom: The Golden Age of Rock Nik Cohn 1968 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
57 Em Busca de Christa T. Christa Wolf 1968
58 The Sound of the City: The Rise of Rock and Roll Charlie Gillete 1970 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
59 Octobriana and Russian underground Peter Sadecky 1971 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
60 No Castelo do Barba Azul: Algumas notas para a redefinição da Cultura George Steiner 1971
61 Antes do Dilúvio: m retrato de Berlim nos anos 20 Otto Friedrich 1972
62 Selected Poems Frank O'Hara 1974 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
63 Mystery Train Greil Marcus 1975 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
64 Tales of Beatnik Glory Ed Saunders 1975 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
65 The Origin of Consciousness in the Breakdown of Bicameral Mind Julian Jaynes 1976 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
66 Escritores em Ação: As famosas entrevistas à Paris Review Malcolm Cowley 1977
67 Entre Lençóis Ian McEwan 1978
68 Metropolitan Life Fran Lebowitz 1978 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
69 Os Evangelhos Gnósticos Elaine Pagels 1979
70 Viz
1979 *** (Revista)
71 Raw
1980-1991 *** (Graphic Novel)
72 Poderes Terrenos Anthony Burgess 1980
73 O Zero e o Infinito Arthur Koestler 1980
74 Entrevistas com Francis Bacon David Silvester 1980
75 Uma Confraria de Tolos John Kennedy Toole 1980
76 People's History of the United States Howard Zinn 1980
77 A Vida e a Época de Little Richards Charles White 1984
78 O Papagaio de Flaubert Julian Barnes 1984
79 Ruído Branco Don DeLillo 1984
80 Grana Martin Amis 1984
81 Noites no Circo Angela Carter 1984
82 Nowhere To Run: The Story of Soul Music Gerri Hirshey 1984 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
83 Duplo Diabólico Peter Ackroyd 1985
84 O Rastro dos Cantos Bruce Chatwin 1986
85 Sweet Soul Music: Rhythm and Blues and the Southern Dream of Freedom Peter Guralnick 1986 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
86 David Bomberg Richard Cork 1988 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
87 Personas Sexuais: Arte e Decadência de Nefertite a Emily Dickinson Camille Paglia 1990
88 Beyond the Brillo Box: The Visual Arts in Post-Historical Perspective Arthur C. Danto 1992 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
89 Kafka Was the Rage: a Greenwich Village Memoir Anatole Broyard 1993 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
90 O Pintor de Pássaros Howard Norman 1994
91 Garotos Incríveis Michael Chabon 1995
92 O Ataque Rupert Thomson 1996
93 Tragédia de um Povo: A Revolução Russa (1891-1924) Orlando Figes 1997
94 Mr. Wilson's Cabinet of Wonders Lawrence Weschler 1997
95 O Julgamento de Kissinger Christopher Hitchens 2001
96 Na Ponta dos Dedos Sarah Waters 2002
97 A Criação da Juventude (1875-1945) Jon Savage 2007
98 The Coast of Utopia (trilogia) Tom Stoppard 2007 NÃO TEM EM PORTUGUÊS
99 A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao Junot Diaz 2007
100 The Age of American Unreason Susan Jacob 2008 NÃO TEM EM PORTUGUÊS

13 de janeiro de 2016

Os números da pseudo-cinefilia de 2015

Comecei a listar os filmes que assistia em 2013. Naquele ano atingi o pífio número de 82 filmes assistidos em 365 dias. No ano seguinte assisti 200. Em 2015 consegui apenas 128 filmes.
Desses, 75 assisti no cinema (recorde da vida). Foram produções de 29 países diferentes (no caso de coproduções contei só um país) entre 1954 e 2015. O diretor mais assistido foi Jean-Luc Godard. Além de vários curtas na Retrospectiva CCBB, só aqui foram 9 longas do distinto. A partir disso, começo as tradicionais listas de fim de ano.
Melhores filmes do ano:

1. O Abraço da Serpente (inédito no circuito comercial) (Colômbia)
2. Sangue Azul (Brasil)
3. Adeus à Linguagem (França)
4. Que Horas Ela Volta (Brasil)
5. Whiplash (EUA)
6. Cobain: A Montage of Heck (EUA)
7. O Ano Mais Violento (EUA)
8. Divertida Mente (EUA)
9. Sicario (EUA)
10. Vício Inerente (EUA)

De todos os filmes assistidos, a descoberta do ano foi House (Hausu), obra prima surreal japonesa de 1973 que tive que escrever sobre aqui neste blog
Enfins, a lista. Em vermelho são os que assisti no cinema. Em roxo, os que assisti no cinema também, mas durante a Mostra de São Paulo e talvez demorem bastante para serem lançados comercialmente no Brasil – isso se lançarem. Sei que não interessa ninguém esse post, mas já foi. A quem interessar e a quem confiar, serve no mínimo de referência para o que assistir ou não e para comparar as notas (5 estrelas é Excelente, 4 estrelas é Muito Bom, 3 estrelas é Bom, 2 estrelas é Regular, Mais ou Menos – mais pra menos que pra mais – e 1 estrela é Ruim, Desprezível e tudo mais o que for de pior).

  1. Harakiri (Japão, 1962) *****
  2. O Ciclista (Irã, 1987) ****
  3. Acima das Nuvens (França/Alemanha/Suíça, 2014) ****
  4. Ataque dos Morcegos (EUA, 2005) *
  5. Whiplash – Em Busca da Perfeição (EUA, 2014) *****
  6. O Homem Duplicado (Canadá/Espanha, 2013) *****
  7. Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (Irã, 1987) *****
  8. O Profeta (França, 2009) ****
  9. Heleno (Brasil, 2012) *****
  10. O Sol Por Testemunha (França/Itália, 1960) ****
  11. Um Lugar na Terra (França, 2014) ***
  12. Vândalo (França, 2014) ***
  13. A Alma Roqueira de Noel (Brasil, 2011) ****
  14. O Estranho Sem Nome (EUA, 1973) ****
  15. Birdman, ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) (EUA, 2014) ***
  16. Garotos do Leste (França, 2014) ****
  17. A Estranha Cor das Lágrimas do Seu Corpo (Bélgica/França/Luxemburgo, 2014) **
  18. Hardcore – No Submundo do Sexo (EUA, 1979) ****
  19. Terra de Ninguém (EUA, 1973) ****
  20. O Comboio do Medo (EUA, 1977) *****
  21. O Abutre (EUA, 2014) ****
  22. A Teoria de Tudo (EUA, 2014) **
  23. O Jogo da Imitação (EUA, 2014) **
  24. Como Eu Odiava Matemática (França, 2014) ***
  25. O Gato Preto (Japão, 1968) ***
  26. O Chamado (Japão, 1998) ****
  27. Hausu (Japão, 1977) *****
  28. Respire (França, 2014) ****
  29. Clube Tristeza (França, 2014) ***
  30. Boogie Nights – Prazer Sem Limites (EUA, 1997) *****
  31. Selma – Uma Luta Pela Igualdade (EUA, 2014) ***
  32. Dois Dias, Uma Noite (Bélgica/França/Itália, 2014) ****
  33. Sniper Americano (EUA, 2014) **
  34. Caminhos da Floresta (EUA, 2014) ***
  35. Onde Os Fracos Não Têm Vez (EUA, 2007) *****
  36. Glória (Chile) *****
  37. Hotel Mekong (Tailândia, 2012) **
  38. O Grande Mestre (China, 2013) **
  39. Quatro Meses Três Semanas e Dois Dias (Romênia, 2007) *****
  40. Vício Inerente (EUA, 2014) *****
  41. Magnólia (EUA, 1999) *****
  42. Nina (Brasil, 2004) *****
  43. Caché (Alemanha/Áustria/Itália/França, 2005) ****
  44. Vida e Nada Mais ou E a Vida Continua (Irã, 1992) *****
  45. Mapas Para as Estrelas (EUA, 2014) ****
  46. Um Filme Sérvio (Sérvia, 2011) *
  47. Obrigado a Matar (Brasil, 2010) *
  48. Winter Sleep (Turquia, 2014) ***
  49. Entre Abelhas (Brasil, 2015) *****
  50. Blind (Noruega, 2014) ****
  51. Mad Max (Austrália, 1979) ****
  52. Mad Max 2: A Caçada Continua (Austrália, 1981) **
  53. Deus e o Diabo na Terra do Sol (Brasil, 1964) *****
  54. Mad Max: A Estrada da Fúria (Austrália/EUA, 2015) ****
  55. Biutiful (Espanha/México, 2010) **
  56. O Mestre Invencível II (Hong Kong, 1995) ****
  57. Global Metal (EUA, 2008) *****
  58. Túmulo dos Vaga-lumes (Japão, 1988) ****
  59. A Idade da Terra (Brasil, 1980) **
  60. O Demônio das Onze Horas (França, 1965) *****
  61. Que Mal Eu Fiz A Deus? (França, 2014) ****
  62. Sangue Azul (Brasil, 2014) *****
  63. Romance Policial (Brasil, 2012) ***
  64. O Ano Mais Violento (EUA, 2014) ****
  65. Atirem no Pianista (França, 1960) ***
  66. Zazie no Metrô (França/Itália, 1960) ***
  67. Lola, a Flor Proibida (França/Itália, 1961) ****
  68. Alphaville (França/Itália, 1965) ***
  69. Os Guarda-chuvas do Amor (França/Alemanha, 1964) *****
  70. O Amor Aos 20 Anos (França/Itália/Japão, 1962) ***
  71. Cobain: Montage of Heck (EUA, 2015) *****
  72. Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Virtual (Argentina, 2011) ****
  73. A Promessa (EUA, 2001) ****
  74. Manhattan (EUA, 1979) *****
  75. Jardins de Pedra (EUA, 1985) ***
  76. Apocalypse Now Redux (EUA, 1979) *****
  77. A Conversação (EUA, 1974) ****
  78. O Conformista (Itália/França, 1970) ****
  79. Os Idiotas (Dinamarca, 1998) ****
  80. Divertida Mente (EUA, 2015) *****
  81. Caminhos Mal Traçados (EUA, 1969) ***
  82. A Década Que Mudou o Cinema (EUA, 2003) ****
  83. O Sétimo Selo (Suécia, 1959) *
  84. O Império da Paixão (Japão/França, 1979) *****
  85. Ato, Atalho e Vento (Brasil, 2015) ***
  86. Herói Transparente (Panamá, 2014) ***
  87. Blues dos Plomos (Argentina, 2013) ****
  88. Videofilia e Outras Síndromes Virais (Peru, 2015) ***
  89. Sozinhos (Peru, 2015) ****
  90. As Fábulas Negras (Brasil, 2015) ****
  91. O Ardor (Argentina/Brasil/França/EUA/México, 2014) **
  92. Mar ****
  93. Pantanal **
  94. Natureza Morta *
  95. Adeus à Linguagem (França, 2014) ?????
  96. Os Dois Lados do Amor: Ele (EUA, 2013) ***
  97. Love (França/Bélgica, 2015) ***
  98. Minha Irmã Magra (Suécia/Alemanha, 2015) ***
  99. Um Homem Decente (Suíça, 2015) ****
  100. Son of Saul (Hungria, 2015) ****
  101. Sindicato de Ladrões (EUA, 1954) *****
  102. Marias (Brasil, 2015) ****
  103. Monica Z (Suécia, 2013) ***
  104. Lo Que Lleva El Río (Venezuela, 2014) ***
  105. Atenção à Direita (França, 1987) ***
  106. A Ovelha Negra (Islândia, 2015) *****
  107. O Abraço da Serpente (Colômbia, 2015) *****
  108. Os Eternos Desconhecidos (Itália, 1958) ****
  109. As Mil e Uma Noites – Volume 1: O Inquieto (Portugal, 2015) ***
  110. Nós Somos Jovens, Nós Somos Fortes (Alemanha, 2014) **
  111. A Terra e A Sombra (Colômbia, 2015) *****
  112. Aguaceiro (Irã, 1972)
  113. Uma Mulher é Uma Mulher (França, 1961) ****
  114. Verão Seco (Turquia, 1964) *****
  115. Sicário – Terra de Ninguém (EUA, 2015) *****
  116. Tempo de Guerra (França, 1964) ****
  117. One Plus One / Sympathy For The Devil (França, 1968) ***
  118. Pravda (França, 1969) **
  119. Week-end à Francesa (França, 1967) **
  120. A Chinesa (França, 1967) *****
  121. Onde Anda Você? (Brasil, 2004) ***
  122. Obra (Brasil, 2013) ****
  123. Tangerine (EUA, 2015) ***
  124. Chico – Artista Brasileiro (Brasil, 2015) *****
  125. Que Horas Ela Volta? (Brasil, 2015) *****
  126. Mia Madre (Itália, 2015) ****
  127. Geração Prozac (EUA, 2001) **
  128. O Clã (Argentina, 2015) ****

Lista de 2014
Lista de 2013

28 de dezembro de 2015

Centanni + 20, ou "Il Cinema é un'invenzione senza avvenire"

Na noite de 28 de dezembro de 1895 Auguste e Louis Lumière apresentaram algumas imagens em movimento a partir de sua nova invenção. Era a primeira sessão de cinema de todas. Os próprios irmãos diziam que era uma invenção sem futuro. passados 120 anos, talvez eles tinham razão.
Que porra é essa?” foi o pensamento silencioso do garoto em pé no trem ao olhar para o tablet da garota sentada no banco abaixo dele. A imagem mostrava uma paisagem árida; uma colina com uma trilha em “Z” e uma única árvore no topo. Na trilha corria um menino de blusa vermelha. A seguir a cena mostrava o menino correndo por outros cenários não menos áridos. O garoto que observava não podia escutar a trilha oriental que acompanhava a cena, cuja garota ouvia no fone, mas a cena não deixava de ser emblemática.
Quando a garota desligou o tablet e prenunciou seu desembarque do vagão, o garoto não deixou sua timidez vencê-lo como outras vezes e tomou coragem de perguntar o que era aquele vídeo que ela assistia com tanta atenção. Ao respondê-lo com o nome do filme iraniano de seu diretor predileto daquela semana, a garota fez o inerte rapaz se apaixonar imediatamente. Não se apaixonara pelo gosto em comum, mas pelo exotismo que ela ali representava. Ele pediu seu número de telefone. Ela obviamente passou-lhe um número errado e depois que saiu metrô certamente os dois jamais se veriam novamente. Da paixão pela garota, o rapaz faria nutrir aos poucos uma nova paixão.
Aos dezessete anos ela era o tipo mais insosso daquela geração. Recém-descoberta a Nouvelle Vague, ela seguia o padrão intragável de jovem cinéfila que conhecera “Os Sonhadores” pelo Tumblr. Mantinha uma franja a la Anna Karina e usava vestidos listrados aproveitando-se da mesada de seus pais para colecionar pôsteres e visitar galerias de arte com sua câmera polaroid como se estivesse nos anos sessenta. Ignorava a qualidade de seu iPhone, pois o vintage era o charme. Tinha poucos amigos; os que andavam junto a ela tinham o mesmo berço de quarto grande no décimo quinto andar de um bairro nobre e ampla variação de camisetas do Che Guevara no guarda-roupa.
Ele pelo contrário, com sua feição de jovem desempregado parecia mais um daqueles personagens do Neo-realismo vagando de canto a canto da cidade procurando emprego. Era seu último ano no colégio e precisava imediatamente de grana para bancar uma faculdade a posteriori, já que sua inteligência mediana não garantiria um ingresso numa universidade pública. Naquele dia do trem vinha de uma entrevista para mais um desses serviços telefônicos que prometiam ser o mercado de trabalho de uma juventude que de promissora possuía apenas o antônimo da palavra. Não conhecia filme iraniano. Seu pífio conhecimento cinematográfico resumia-se aos besteiróis infantis das adaptações dos besteiróis infantis das HQs que era viciado.
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Ora estamos agora três anos depois acompanhando o jovem rapaz em um trabalho de campo para a sua faculdade. Depois de ver aquela garota, começou uma odisseia de requalificação de ser humano que mudou sua vida. Quis saber mais sobre cinema; entrou em alguns blogs e fóruns e passou a baixar filmes. Começou pelo beabá que todos do século XXI percorrem. Tarantino leva a De Palma que leva a Hitchcock, etc. Tarantino leva a Leone que leva a Kurosawa, etc. Tarantino leva a Nova Hollywood que leva a Nouvelle Vague que leva ao Neorrealismo que leva ao Realismo Poético que leva ao Cinema Clássico que leva ao primeiro cinema sonoro que leva ao último cinema mudo, etc. E assim viveu seu ano de graduação em administração de empresas em uma universidade barata antes de descobrir o cinema pernambucano contemporâneo que o levaria a trancar o curso no fim do segundo semestre para prestar um novo vestibular para cinema. Ignorava a improbabilidade de sobrevivência que esta escolha acarretaria, mas assim o fez.
Ela continuava a viver por viver. Empregada por um amigo de seu pai em um serviço de seis horas próximo aos cinemas saía sempre dez minutos antes do fim do expediente para pegar a primeira sessão noturna. E depois voltava para casa para assistir alguns de seus DVDs. Em três anos a garota passara por uma seleção ampla de filmes cults que fizeram de si uma persona um pouco menos caricata, mas não menos insuportável. Em três anos mudara de estilo visual inúmeras vezes e no momento que a acompanhamos ela mantém um cabelo de Rosemary gestante e usa roupas masculinas like a Annie Hall demonstrando que vivia uma fase woodyalleana. Lia como um raio, trocando de livros a cada dois dias. Mantinha certas amizades que também frequentavam os mesmos lugares, pouco, pouquíssimo evoluíra desde o começo do relato.
Comédia Musical
Via tudo agora com um olhar cinematográfico aquele garoto. Seu bairro que sempre detestou recebia agora em sua mente um toque de suburbano. Em sua imaginação um traveling sempre acompanhava seu campo de visão pelas ruas vazias de carro e cheias de gente. Imaginava fazer um grande épico contando sua ascensão desde os tempos que brincava de bola sem camisa com os pivetes que hoje fumam maconha na porta dos prédios do conjunto habitacional. Pensava em que tipo de lente seria o mais crível para captar o pôr do sol sobre os barracos da favela que ele só agora achava lindo.
Ela possuía igual tamanha imaginação. Certa vez ao sair de uma sessão de cineclube deu de sapatear no saguão, esquecendo-se da escadaria, que acometer-lhe-ia um joelho rasgado e um dia de licença no trabalho, que possibilitou-lhe assistir incríveis sete filmes em casa. Quando – raramente – arrumava o quarto cantava, como se fosse uma dona de bordel dos anos cinquenta ajeitando as colchas para ajeitar as coxas na sequência.
Luz
Vinde a mim todo o esplendor
Vinde a mim todo o olhar que recai
Sobre o que vides a mim e te atrai
Vinde a mim
E vai
(…) inventava ela na hora para incompreensão de seus pais que da porta pra fora ouviam.
DRAMA
Certa noite ela foi em uma daquelas sessões da madrugada também conhecidas como “Noitão”. Os filmes eram de um mesmo diretor lá da Dinamarca. Após uma noite com três filmes que de tanto pesar secou-lhe as lágrimas, ela não conseguiu dormir. Seus olhos secos e a mente ininterrupta fizeram-na ler mais do que estava acostumada nas noites seguintes. Algo acontecia em seu cérebro. Em menos de uma semana trocou de personalidade. Já não mais cantava versos sem sentido ou saltitava pela rua. Era como se tivesse comprado um pacote completo. Café. Signo. [Gêmeos]. Ansiedade. Feminismo. Pessimismo. Mais café. Mais ansiosa ficava. Em uma semana, PLAU: constata a partir de um livro que está com depressão.
Ela não busca ajuda, não comenta a ninguém. Ela fala com um colega que diz para outro amigo que tem um contato com o irmão de alguém que tem uma arma. Em poucos dias ela está portando ilegalmente uma pistola de 40 onde deixaria carregada apenas uma bala. Não ia ter uma morte desesperada ou sem graça. Mesmo abraçada a melancolia previa sua morte como algo glorioso, nem que fosse apenas para si. Iria em todas as sessões que conseguisse. Dane-se o emprego, arruma-se dinheiro de outra forma, pensa-se nisso depois. A cada sessão um filme. E naquele que seria o melhor filme já visto ela atiraria contra sua própria cabeça.
Aproveitava que os cinemas ainda são os únicos lugares que você pode entrar sem passar por uma revista ou por um detector de metais e sempre ia para a sessão com sua pistola na bolsinha. Passaram-se meses. Nada. Desilusões, felicidades. Em alguns momentos chegava até mesmo a desistir da ideia da morte, o quão bom era o filme que tinha acabado de assistir. Outrora, desejava gastar aquela bala atirando contra a tela. Drama, guerra, horror, documentários e outros que qualquer um seria incapaz de definir em apenas um gênero.
Eis que em uma tarde ela está na segunda poltrona do cinema para assistir a estreia de uma comédia. Sabia que dali sairia viva. Mas as risadas foram tantas e tão inesperadas que em certo momento não tinha mais certeza de nada. Aquilo era de outro mundo. Jamais tivera sensação parecida a não ser assistindo a caixa de Charlie Chaplin em sua pré adolescência. Na subida dos créditos, aplausos. Ela estava perplexa. Era aquele o momento. Ao final do último crédito, quando os funcionários da limpeza aguardavam os dois últimos espectadores saírem da sala, ela pegou sua arma e disparou contra sua cabeça. Não veria os elogios que a crítica faria ao filme no dia seguinte, chamando o diretor de maior gênio da comédia desde o surgimento do cinema sonoro.
terror
Vida. Não é coisa apenas de texto. Geralmente acontece essas bizarrices na vida real também. O único espectador que estava naquela sala àquela altura dos créditos é nosso herói. Uma das protagonistas está morta, então sobra-lhe o bastão para continuar como apoio para o resto do relato. Mas faltar-lhe-á apoio psicológico para superar a imagem dos miolos estourando exatamente três poltronas a sua frente. Não, ele jamais saberá que aquele cadáver era daquela menina que um dia indiretamente mudara sua vida anos atrás em um metrô. Ele jamais veria seu corpo jazendo no carpete da sala; obviamente ele saiu correndo e gritando do cinema.
A psicose nasceu naquele dia. O rapaz está agora dirigindo seu carro pela cidade. Não se sabe como ele comprou, desde quando ele o tem, mas ele está aí. Não demora muito ele bate em uma quitanda derrubando todas as frutas e verduras. Ele agora está correndo a pé, desesperado. Quando encontra uma saída do metrô não pensa duas vezes. Praticamente se joga pela escadaria alcançando a superfície da estação em pouca fração de segundo. Agora ele já está dentro de um vagão, sentado. Compra uma água com um ambulante. Está um pouco mais calmo. Já é a quarta volta dele no metrô. Por não ser horário de pico não é de se estranhar que ele não tenha sido enxotado por um segurança.
Surto. Ele se levanta e pensa que é Buster Keaton. Vai bailando pelo vagão segurando nos pega-mãos até que prende seu braço entre um balaústre e a parede do trem imaginando estar em uma comédia muda. O corpo de bombeiros chega depois dos passageiros tentarem em vão lhe socorrer. Ele está absolutamente fora de si enquanto é levado para um hospital para se recompor.
Dias depois, com sua família, o rapaz ouve a voz de seu pai dando um sermão em sua mãe na cozinha dizendo que ela era a culpada pela situação do menino. Jamais deveria ter permitido ele estudar porcarias, aquilo só fazia ficar louco. Enquanto eles discutiam, o garoto levantou-se e saiu pela porta rumando sem rumo pela rua. Parou em frente a sala de cinema. Passaria dali em instantes um filme que desejava há tempos assistir. Mas não entrou. Continuou andando sem um destino certo.


Os dois protagonistas mortos. Não faria sentido algum prosseguir o relato se não estivéssemos no período que estamos. Tudo é contemporâneo, tudo é experimentação. Em compensação, quase nada é bom. Mas a negação ao ponto final deve-se a urgência do tema a ser tratado que foi a conferência de um cineasta catalão naquela mesma noite. Mesmo que nada tenha a ver com as duas figuras que heroicizaram este texto, devemos tratar, tamanha foi sua importância para a vida contínua do cinema mundial.
O polêmico diretor chamou a imprensa. Suas palavras foram gravadas e transcritas quase que como um ensaio universal sobre o cinema. Mais do que um relato jornalístico, o que aconteceria ali seria um filme documental, ora pois o próprio diretor chamou sua equipe para filmar aquele espetáculo que prometia.
Quando à primeira pergunta, a propósito de seu último longa foi feita, sua resposta desviou para o caminho que queria. Após falar que adorava o filme, mas detestara todos que nele participaram, concluiu que o ser humano era desprezível, ao contrário do cinema. Nada na humanidade importava, apenas a arte, o cinema. Intrigados os jornalistas começaram a disparar; para sua surpresa, o veterano cineasta rebatia com uma voracidade igual ou maior. Um jornalista francês interrogou sobre o sentido de fazer arte a não ser para a própria humanidade. O catalão respondeu que a arte não necessitava de sentido e a seguir perguntou se a humanidade alguma vez fora tocada pela arte. Ao silêncio do jornalista ele continuou – apontando o dedo para o francês – falando de Guernica e da Batalha de Argel que o “seu país” tanto adorara. Qual o sentido político dessas obras? Existia alguma humanidade, ou era a arte pela arte?
Quando um castelão afirmou que ora, o cinema tinha sido criado pelo homem, era idiotice o que ele dizia, o diretor respondeu que a bíblia também tinha sido escrita pelas mãos do homem. E quando um americano lhe questionou acerca das pessoas do filme, o catalão foi enfático: “Brando era um estuprador. Mas sua arte, bela. Polanski? Pedófilo, mas sua arte, bela. Eu? Ora, orem para mim, depois vejam meu filme. Todos os homens são merdas, incluindo vocês. Todos viraremos merda, mas o cinema fica. O cinema vive. O cinema persiste, quer vós quereis, ou não. Acima de nós tudo, acima de tudo, o cinema, a arte.”
O grand finale. Ninguém sabia que a versão lunática do cineasta, com trinta anos de carreira e oito filmes, todos verdadeiras obras-primas do cinema espanhol pendia para o suicídio e o terrorismo. Debaixo de sua mesa havia uma mochila com uma bomba química. Ao encerrar a coletiva mandando todos que estavam ali se foderem, ele pisou com força na mochila impulsionando o volume que liberara um gás tóxico que em poucos segundos destroçara o cineasta, todas as centenas de jornalistas e funcionários do prédio. Nada de explosão cinematográfica como quereria o leitor imaginando um grand finale. Ora, o cineasta pensara em tudo e queria que o material se preservasse intacto para ser lançado como obra de arte. Assim o fez.
Mas não havia ninguém para montar o material filmado. E ninguém que quisesse assistir. A obra estava tão morta quanto seu criador.