Na noite de 28 de dezembro de 1895 Auguste e Louis Lumière
apresentaram algumas imagens em movimento a partir de sua nova
invenção. Era a primeira sessão de cinema de todas. Os próprios
irmãos diziam que era uma invenção sem futuro. passados 120 anos,
talvez eles tinham razão.
“Que porra é essa?” foi o
pensamento silencioso do garoto em pé no trem ao olhar para o tablet
da garota sentada no banco abaixo dele. A imagem mostrava uma
paisagem árida; uma colina com uma trilha em “Z” e uma única
árvore no topo. Na trilha corria um menino de blusa vermelha. A
seguir a cena mostrava o menino correndo por outros cenários não
menos áridos. O garoto que observava não podia escutar a trilha
oriental que acompanhava a cena, cuja garota ouvia no fone, mas a
cena não deixava de ser emblemática.
Quando a garota desligou o tablet
e prenunciou seu desembarque do vagão, o garoto não deixou sua
timidez vencê-lo como outras vezes e tomou coragem de perguntar o
que era aquele vídeo que ela assistia com tanta atenção. Ao
respondê-lo com o nome do filme iraniano de seu diretor predileto
daquela semana, a garota fez o inerte rapaz se apaixonar
imediatamente. Não se apaixonara pelo gosto em comum, mas pelo
exotismo que ela ali representava. Ele pediu seu número de telefone.
Ela obviamente passou-lhe um número errado e depois que saiu metrô
certamente os dois jamais se veriam novamente. Da paixão pela
garota, o rapaz faria nutrir aos poucos uma nova paixão.
Aos dezessete anos ela era o tipo
mais insosso daquela geração. Recém-descoberta a Nouvelle Vague,
ela seguia o padrão intragável de jovem cinéfila que conhecera “Os
Sonhadores” pelo Tumblr. Mantinha uma franja a la Anna Karina e
usava vestidos listrados aproveitando-se da mesada de seus pais para
colecionar pôsteres e visitar galerias de arte com sua câmera
polaroid como se estivesse nos anos sessenta. Ignorava a qualidade de
seu iPhone, pois o vintage era o charme. Tinha poucos amigos; os que
andavam junto a ela tinham o mesmo berço de quarto grande no décimo
quinto andar de um bairro nobre e ampla variação de camisetas do
Che Guevara no guarda-roupa.
Ele pelo contrário, com sua
feição de jovem desempregado parecia mais um daqueles personagens
do Neo-realismo vagando de canto a canto da cidade procurando
emprego. Era seu último ano no colégio e precisava imediatamente de
grana para bancar uma faculdade a posteriori, já que sua
inteligência mediana não garantiria um ingresso numa universidade
pública. Naquele dia do trem vinha de uma entrevista para mais um
desses serviços telefônicos que prometiam ser o mercado de trabalho
de uma juventude que de promissora possuía apenas o antônimo da
palavra. Não conhecia filme iraniano. Seu pífio conhecimento
cinematográfico resumia-se aos besteiróis infantis das adaptações
dos besteiróis infantis das HQs que era viciado.
A
ç
ã
o
Ora estamos
agora três anos depois acompanhando o jovem rapaz em um trabalho de
campo para a sua faculdade. Depois de ver aquela garota, começou uma
odisseia de requalificação de ser humano que mudou sua vida. Quis
saber mais sobre cinema; entrou em
alguns blogs e fóruns e passou a baixar filmes. Começou pelo beabá
que todos do século XXI percorrem. Tarantino leva a De Palma que
leva a Hitchcock, etc. Tarantino leva a Leone que leva a Kurosawa,
etc. Tarantino leva a Nova Hollywood que leva a Nouvelle Vague que
leva ao Neorrealismo que leva ao Realismo Poético que leva ao Cinema
Clássico que leva ao primeiro cinema sonoro que leva ao último
cinema mudo, etc. E assim viveu seu ano de graduação em
administração de empresas em uma universidade barata antes de
descobrir o cinema pernambucano contemporâneo que o levaria a
trancar o curso no fim do segundo semestre para prestar um novo
vestibular para cinema. Ignorava a improbabilidade de sobrevivência
que esta escolha acarretaria, mas assim o fez.
Ela
continuava a viver por viver. Empregada por um amigo de seu pai em um
serviço de seis horas próximo aos cinemas saía sempre dez minutos
antes do fim do expediente para pegar a primeira sessão noturna. E
depois voltava para casa para assistir alguns de seus DVDs. Em três
anos a garota passara por uma seleção ampla de filmes cults que
fizeram de si uma persona um pouco menos caricata, mas não menos
insuportável. Em três anos mudara de estilo visual inúmeras vezes
e no momento que a acompanhamos ela mantém um cabelo de Rosemary
gestante e usa roupas masculinas like a Annie Hall demonstrando que
vivia uma fase woodyalleana. Lia como um raio, trocando de livros a
cada dois dias. Mantinha certas amizades que também frequentavam
os mesmos lugares, pouco, pouquíssimo evoluíra desde o começo do
relato.
Comédia
Musical
Via tudo agora com um olhar
cinematográfico aquele garoto. Seu bairro que sempre detestou
recebia agora em sua mente um toque de suburbano. Em sua imaginação
um traveling sempre acompanhava seu campo de visão pelas ruas vazias
de carro e cheias de gente. Imaginava fazer um grande épico contando
sua ascensão desde os tempos que brincava de bola sem camisa com os
pivetes que hoje fumam maconha na porta dos prédios do conjunto
habitacional. Pensava em que tipo de lente seria o mais crível para
captar o pôr do sol sobre os barracos da favela que ele só agora
achava lindo.
Ela possuía
igual tamanha imaginação. Certa vez ao sair de uma sessão de
cineclube deu de sapatear no saguão, esquecendo-se da escadaria, que
acometer-lhe-ia um joelho rasgado e um dia de licença no trabalho,
que possibilitou-lhe assistir incríveis sete filmes em casa. Quando
– raramente – arrumava o quarto cantava, como se fosse uma dona
de bordel dos anos cinquenta ajeitando as colchas para ajeitar as
coxas na sequência.
Luz
Vinde a mim todo o esplendor
Vinde a mim todo o olhar que
recai
Sobre o
que vides a mim e te atrai
Vinde a mim
E vai
(…) inventava ela na hora para
incompreensão de seus pais que da porta pra fora ouviam.
DRAMA
Certa noite ela foi em uma
daquelas sessões da madrugada também conhecidas como “Noitão”.
Os filmes eram de um mesmo diretor lá da Dinamarca. Após uma noite
com três filmes que de tanto pesar secou-lhe as lágrimas, ela não
conseguiu dormir. Seus olhos secos e a mente ininterrupta fizeram-na
ler mais do que estava acostumada nas noites seguintes. Algo
acontecia em seu cérebro. Em menos de uma semana trocou de
personalidade. Já não mais cantava versos sem sentido ou saltitava
pela rua. Era como se tivesse comprado um pacote completo. Café.
Signo. [Gêmeos]. Ansiedade. Feminismo. Pessimismo. Mais café. Mais
ansiosa ficava. Em uma semana, PLAU: constata a partir de um livro
que está com depressão.
Ela não
busca ajuda, não comenta a ninguém. Ela fala com um colega que diz
para outro amigo que tem um contato com o irmão de alguém que tem
uma arma. Em poucos dias ela está portando ilegalmente uma pistola
de 40 onde deixaria carregada apenas uma bala. Não ia ter uma morte
desesperada ou sem graça. Mesmo abraçada a melancolia previa sua
morte como algo glorioso, nem que fosse apenas para si. Iria em todas
as sessões que conseguisse. Dane-se o emprego, arruma-se dinheiro de
outra forma, pensa-se nisso depois. A cada sessão um filme. E
naquele que seria o melhor filme já visto ela atiraria contra sua
própria cabeça.
Aproveitava que os cinemas ainda
são os únicos lugares que você pode entrar sem passar por uma
revista ou por um detector de metais e sempre ia para a sessão com
sua pistola na bolsinha. Passaram-se meses. Nada. Desilusões,
felicidades. Em alguns momentos chegava até mesmo a desistir da
ideia da morte, o quão bom era o filme que tinha acabado de
assistir. Outrora, desejava gastar aquela bala atirando contra a
tela. Drama, guerra, horror, documentários e outros que qualquer um
seria incapaz de definir em apenas um gênero.
Eis que em uma tarde ela está na
segunda poltrona do cinema para assistir a estreia de uma comédia.
Sabia que dali sairia viva. Mas as risadas foram tantas e tão
inesperadas que em certo momento não tinha mais certeza de nada.
Aquilo era de outro mundo. Jamais tivera sensação parecida a não
ser assistindo a caixa de Charlie Chaplin em sua pré adolescência.
Na subida dos créditos, aplausos. Ela estava perplexa. Era aquele o
momento. Ao final do último crédito, quando os funcionários da
limpeza aguardavam os dois últimos espectadores saírem da sala, ela
pegou sua arma e disparou contra sua cabeça. Não veria os elogios
que a crítica faria ao filme no dia seguinte, chamando o diretor de
maior gênio da comédia desde o surgimento do cinema sonoro.
terror
Vida. Não
é coisa apenas de texto. Geralmente acontece essas bizarrices na
vida real também. O único espectador que estava naquela sala àquela
altura dos créditos é nosso herói. Uma das protagonistas está
morta, então sobra-lhe o bastão para continuar como apoio para o
resto do relato. Mas faltar-lhe-á apoio psicológico para superar a
imagem dos miolos estourando exatamente três poltronas a sua frente.
Não, ele jamais saberá que aquele cadáver era daquela menina que
um dia indiretamente mudara sua vida anos atrás em um metrô. Ele
jamais veria seu corpo jazendo no carpete da sala; obviamente ele
saiu correndo e gritando do cinema.
A psicose nasceu naquele dia. O
rapaz está agora dirigindo seu carro pela cidade. Não se sabe como
ele comprou, desde quando ele o tem, mas ele está aí. Não demora
muito ele bate em uma quitanda derrubando todas as frutas e verduras.
Ele agora está correndo a pé, desesperado. Quando encontra uma
saída do metrô não pensa duas vezes. Praticamente se joga pela
escadaria alcançando a superfície da estação em pouca fração de
segundo. Agora ele já está dentro de um vagão, sentado. Compra uma
água com um ambulante. Está um pouco mais calmo. Já é a quarta
volta dele no metrô. Por não ser horário de pico não é de se
estranhar que ele não tenha sido enxotado por um segurança.
Surto. Ele
se levanta e pensa que é Buster Keaton. Vai bailando pelo vagão
segurando nos pega-mãos até que prende seu braço entre um
balaústre e a parede do trem imaginando estar em uma comédia muda.
O corpo de bombeiros chega depois dos passageiros tentarem em vão
lhe socorrer. Ele está absolutamente fora de si enquanto é levado
para um hospital para se recompor.
Dias depois, com sua família, o
rapaz ouve a voz de seu pai dando um sermão em sua mãe na cozinha
dizendo que ela era a culpada pela situação do menino. Jamais
deveria ter permitido ele estudar porcarias, aquilo só fazia ficar
louco. Enquanto eles discutiam, o garoto levantou-se e saiu pela
porta rumando sem rumo pela rua. Parou em frente a sala de cinema.
Passaria dali em instantes um filme que desejava há tempos assistir.
Mas não entrou. Continuou andando sem um destino certo.
Os dois protagonistas mortos. Não
faria sentido algum prosseguir o relato se não estivéssemos no
período que estamos. Tudo é contemporâneo, tudo é experimentação.
Em compensação, quase nada é bom. Mas a negação ao ponto final
deve-se a urgência do tema a ser tratado que foi a conferência de
um cineasta catalão naquela mesma noite. Mesmo que nada tenha a ver
com as duas figuras que heroicizaram este texto, devemos tratar,
tamanha foi sua importância para a vida contínua do cinema mundial.
O polêmico diretor chamou a
imprensa. Suas palavras foram gravadas e transcritas quase que como
um ensaio universal sobre o cinema. Mais do que um relato
jornalístico, o que aconteceria ali seria um filme documental, ora
pois o próprio diretor chamou sua equipe para filmar aquele
espetáculo que prometia.
Quando à primeira pergunta, a
propósito de seu último longa foi feita, sua resposta desviou para
o caminho que queria. Após falar que adorava o filme, mas detestara
todos que nele participaram, concluiu que o ser humano era
desprezível, ao contrário do cinema. Nada na humanidade importava,
apenas a arte, o cinema. Intrigados os jornalistas começaram a
disparar; para sua surpresa, o veterano cineasta rebatia com uma
voracidade igual ou maior. Um jornalista francês interrogou sobre o
sentido de fazer arte a não ser para a própria humanidade. O
catalão respondeu que a arte não necessitava de sentido e a seguir
perguntou se a humanidade alguma vez fora tocada pela arte. Ao
silêncio do jornalista ele continuou – apontando o dedo para o
francês – falando de Guernica e da Batalha de Argel que o “seu
país” tanto adorara. Qual o sentido político dessas obras?
Existia alguma humanidade, ou era a arte pela arte?
Quando um castelão afirmou que
ora, o cinema tinha sido criado pelo homem, era idiotice o que ele
dizia, o diretor respondeu que a bíblia também tinha sido escrita
pelas mãos do homem. E quando um americano lhe questionou acerca das
pessoas do filme, o catalão foi enfático: “Brando era um
estuprador. Mas sua arte, bela. Polanski? Pedófilo, mas sua arte,
bela. Eu? Ora, orem para mim, depois vejam meu filme. Todos os homens
são merdas, incluindo vocês. Todos viraremos merda, mas o cinema
fica. O cinema vive. O cinema persiste, quer vós quereis, ou não.
Acima de nós tudo, acima de tudo, o cinema, a arte.”
O grand finale. Ninguém sabia
que a versão lunática do cineasta, com trinta anos de carreira e
oito filmes, todos verdadeiras obras-primas do cinema espanhol pendia
para o suicídio e o terrorismo. Debaixo de sua mesa havia uma
mochila com uma bomba química. Ao encerrar a coletiva mandando todos
que estavam ali se foderem, ele pisou com força na mochila
impulsionando o volume que liberara um gás tóxico que em poucos
segundos destroçara o cineasta, todas as centenas de jornalistas e
funcionários do prédio. Nada de explosão cinematográfica como
quereria o leitor imaginando um grand finale. Ora, o cineasta pensara
em tudo e queria que o material se preservasse intacto para ser
lançado como obra de arte. Assim o fez.
Mas não havia ninguém para
montar o material filmado. E ninguém que quisesse assistir. A obra
estava tão morta quanto seu criador.
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