2 de março de 2011

Sobre Nina e Raskolnikov


Nina, de 2004 é um filme interessante. Interessante porque é quase uma charada intertextual, onde você descobre o filme ou ele te devora. Comecei a assistir ontem no Canal Brasil e logo no primeiro diálogo matei a charada de cara.

“Existem pessoas ordinárias e pessoas extraordinárias”. Esta frase me levou às páginas da obra de Fiódor Mikhailovich Dostoievski no ato.Só quem leu Crime e Castigo mataria a charada que é o filme.

Crime e Castigo é uma das melhores obras que já li. O universo psicológico construído por Dostoievski em sua personagem Rodión Românovitch Raskolnikov é angustiante, o estudante que sobrevive na miséria em São Petersburgo, mata uma velha agiota e passa as outras quinhentas páginas submerso no castigo mental que este crime gerou, é um enredo que não sairá facilmente da minha cabeça, coisa apenas conseguida por grandes obras que me tocaram fundo. E foi por isso que associei tão rapidamente a primeira cena de Nina com a obra de Dostoievski.

Nina é uma jovem de fora que sobrevive em São Paulo, hospedada num quarto que divide com uma velha mesquinha que, por não receber os atrasados  a humilha e tortura, trancando a geladeira a cadeado, deixando Nina passar fome. Atormentada pela velha e pela sociedade ao redor, Nina mergulha, como Raskolnikov numa loucura, num vórtice psicológico sem fim e, por fim acaba matando a velha e sentindo o peso da culpa recair sobre ela.

Inúmeras personagens que aparecem no filme fazem clara alusão a Crime e Castigo, como os pintores e os oficiais de justiça – imaginários para Nina. Outras alusões são os cartuns que guiam a história transformando o filme numa atmosfera diferente e uma cena em que Nina sonha com um sacrifício de cavalo.

Talvez o mais impactante do filme seja a sua fotografia obscura que transforma em um clima tenso, como é propriamente na obra de Dostoievski. A atuação de Guta Stresser também é fantástica, revelando tal ambientação psicológica qual era de Raskolnikov. Palmas também para a Myriam Muniz que interpreta a cruel velha Eulália em seu último papel na vida, vindo a falecer no mesmo ano. Ao todo, Nina é um ótimo filme, uma contextualização de um dos maiores escritores da literatura mundial, de um jovem diretor que é Heitor Dhalia (Nina é seu primeiro longa metragem) e do roteirista Marçal Aquino que adaptou Crime e Castigo sem reler, tendo apenas suas páginas na memória (assim como eu, Marçal leu a obra aos 16 anos).

Vale a pena procurar e assistir. Mas não se esqueça primeiramente de ler Crime e Castigo, que além de ser uma obra prima que te marcará, vai te ajudar a matar as charadas do filme.

Nenhum comentário:

Postar um comentário