O ar primaveril de outubro é
praticamente abortado pela tórrida temperatura que assola a pele. É
outubro, aquele mês em que tudo gasto o que não tenho e vejo tudo o
que provavelmente jamais retornarei a ver. Oportunidades únicas de
alimentação cinéfila proporcionadas apenas em outubro são
obstaculizadas por um trajeto de transporte público de trinta e
tantos quilômetros dramaticamente percorridos sob sufocantes trinta
e tantos graus. Sobre os outros compromissos, deixe-os para algum dos
outros onze meses do ano.
Saio de casa com minha pupila
queimando fronte o ensolarado meio dia primaveril e deparo-me com
aquele sorriso sínico estampado no adesivo azul verde e amarelo com
o número de três quartos de minuto tão demagogicamente enfeitado
quanto o sorriso do candidato colado em meu portão. Retiro
brutalmente do ferro e rasgo com fúria antes de jogá-lo com a mesma
fúria no chão. Dou meio passo para o meu destino e volto atrás,
recolho os pedaços do adesivo e adentro novamente minha casa para
jogá-lo no lixo.
Entro no ônibus. Os trinta e
tantos graus multiplicam-se lá dentro. Sou o terceiro a entrar e
escolho aquele banco ao lado do vidro aberto, pronto a receber o ar
pútrido em minha face. Esperamos os bancos se preencherem para o
motorista dar a partida. Uma a uma as pessoas se acomodam nos bancos
logo enchendo o ônibus. Quase todos os bancos estão ocupados, mas o
lugar ao meu lado continua vazio. Lotam todos exceto o meu. Entra uma
linda garota, ameaça sentar-se, mas não, vai para o fundo do ônibus
continuar em pé. Mais dois homens repetem a escolha da guria. Sou
tão ameaçador assim para merecer tal afastamento?
O motorista gira a chave ligando
o motor do ônibus quando entram quatro retardatários antes do
veículo dar a partida. Entre eles está a mulher de meia idade que
ocupa o lugar ao meu lado e logo tira da bolsa aquele livro que odeio
ver qualquer pessoa lendo. Respiro. As narinas ardem.
Era para eu tirar o texto
xerocado da bolsa e lê-lo para a aula da noite. Sei que o professor
é irritantemente autoritário e serei humilhado se quando for
interrogado por ele sobre o tema do texto, responder que não o li.
Mas não leio. Pego aquele livro do Loyola que já li outrora e
resolvi retirar da estante devido o calor. Logo desvio o olhar para o
relógio da avenida; o pitoresco relógio que aponta em que condição
está o ar da cidade. Ruim ele aponta. O grau da temperatura é
inversamente proporcional à umidade do ar. Será que não verei país
nenhum?
Pelo vidro do ônibus vejo quinze
pessoas se esmurrando. Metade delas usa camisa vermelha. A outra
metade divide-se em camisas da seleção e camisas sociais de corte
elegantemente simétricos. O cenário é de guerra civil; uma guerra
civil de quinze pessoas, armadas de bandeiras e se punhos cerrados.
As pessoas no ônibus riem; os outros carros buzinam. Eles não ouvem
as provocações. Estão concentrados em sua própria luta, em seus
próprios objetivos. Eles querem mudar o mundo, cada qual a sua
maneira, e cada maneira melhor que a outra. O ônibus segue, a minha
vida continua e eles mantêm o quebra pau.
Horas depois desembarco. Um
mendigo está parado na esquina elogiando os transeuntes. Já é
rotina encontrá-lo. Da primeira vez me chamou de bonitão. Da
segunda vez, de bonitão simpático. Da terceira vez, lhe dei dois
reais, evento tão raro quanto um eclipse solar. Hoje ele pediu um
abraço. Ninguém que passava lhe dava. Abracei-o, ao riso dos demais
transeuntes. Este homem é esperto, sabe que um elogio é mais
rentável que um pedido de ajuda. Espero que não vire moda entre os
moradores de rua elogiar-me, eles se darão bem, mas ficarei sem
troco.
Encaminho-me para a maldita fila
antes da sessão. As narinas ardem, os olhos pedem lágimas. Pisco
violentamente, fazendo os demais crerem que é tique. Entro na sala e
a sessão começa. O ar está delicioso. Uma hora e trinta e nove
minutos depois saio da sala. Sou o último; os demais saíram quatro
minutos mais cedo, assim que começaram os créditos. Ficaram sem ver
o enigmático chamado “M. Leonard Cohen. I need your help. Please
call me as soon you can.” Esta frase no final dos créditos
conseguiu chamar mais atenção que o filme em si.
Saio da sala e sigo para o
banheiro lavar o rosto e encarar a fila da próxima sessão. Estou
novamente dentro as sala. O ar já não está delicioso. Depois de
uma hora de filme, minha atenção se volta a minha perna tremulante
vítima da minha escolha de vestir uma bermuda. Incompreendo como
passo frio sendo que lá fora está um verão primaveril. Termina a
sessão. Assisto os créditos em pé, pois quero logo sair da sala.
Nada de interessante, afinal os créditos estão em holandês e não
compreendo nada. Ao me ver fora da sala estou novamente respirando a
baforada do ar do outubro mais quente que se tem notícia.
Mas a noite logo cai, junto com a
temperatura. Estou parado no ponto esperando o ônibus e observando
aquele maltrapilho se aproximar de mim. Ele não vem me elogiar, nem
ao menos pedir um abraço. Chega logo me abordando. Antes de terminar
a frase corto-lhe pedindo desesperadamente um cigarro. Todos sabem
que eu não fumo; ele não. Antes de eu saber se ele pediria dinheiro
para comer, para tomar uma cachaça ou andar de ônibus, invetemos
nossa posição. Agora sou eu o pedinte e ele o abordado. É curioso
ver a situação provocada por esta ação. Sua cara, antes de
humilde desânimo torna-se uma feição de mau humor. Ninguém gosta
de ser abordado, é isso que tento passar para ele em segundo lugar.
Em primeiro, obviamente, é que não tenho dinheiro nem para ter
cigarro, quanto mais para ajudá-lo. Se o dono do sorriso estampado
naquele adesivo ganhar as eleições, ele continuará na mesma
situação. Se a adversária dele ganhar, tampouco mudará a vida
daquele cidadão. Tenho a impressão que viverei mais tempo que ele;
tenho a impressão que ele terá vivido mais que eu.
Livre dele, chega o ônibus ao
qual embarco. Quarenta minutos depois, tempo suficiente de me
alimentar de um pão murcho com frios de ontem estou no campus
sabendo das humilhações que o professor doutor que carrega no peito
o bottom vermelho com estrela branca simbolizando teoricamente o
partido da cooperação, da ação social e da representação da
minoria, mas, na prática, da hipocrisia, praticara com os alunos que
não leram o texto. Prefiro não subir para a aula; antes uma falta
que um constrangimento inútil.
Ela aparece no campo de visão e
vem calorosamente me beijar. Não me sinto tão caloroso com tantas
pessoas em volta; devo causar má impressão. Para os já não mais
trinta e tantos graus, pero ainda vinte e muitos graus, minha
ressalva gela ainda mais a temperatura. Desvio a atenção clamando
desesperadamente por uma cerveja, a qual seis ou sete acompanham a
iniciativa. E assim se constrói meu presente, base empírica de meu
futuro profissional.
Enquanto cervejamos eles querem
ouvir de mim alguma coisa engraçada. Eles confiam em mim nesse
ponto: não querem se decepcionar com meus comentários que sempre
provocaram risos. Mas desta vez não sai. Esforço-me. Sai aquela
fala tão engraçada para mim e tão escandalosa para os ouvintes.
Gritam-me machista. Desprezam e abominam e começa uma discussão
infindável na mesa que não leva a lugar nenhum. Seria este mundo
particular dos universitários comparável à alienação que eles
tanto criticam? A realidade de quatro paredes onde tudo se debate,
tudo se desconstrói, tudo se questiona sem fins práticos ou mudança
efetiva alguma está há anos-luz da realidade do ônibus que tomei
para vir para cá, ou da realidade da rua onde moro. Todos pensam no
mundo como um todo, mas ninguém sai de seu mundo particular.
Na volta estamos a sós. Sou mais
caloroso em comparação ao que pareci, mas estou longe. Ela toma uma
coca cola, eu penso nos filmes de amanhã, na hora que terei que
levantar da cama para ler um texto para não se humilhado e partir
para mais duas ou três sessões gratuitas do outro lado da cidade.
Quando percebo o tempo que ficamos juntos é mínimo. Logo desviamos
nossos caminhos. Despeço-me. Despedaço-me.
No trajeto final da minha
odisseia diária aguardo o último ônibus. Já é noite. A lua é a
única luz que se vê no céu. O ar péssimo da cidade esconde os
milhares de astros que poderiam estar presentes agora sobre mim. As
luzes vêm da horizontal, e uma delas é o letreiro do biarticulado
que para a alguns metros de meus pés. Sou o primeiro a entrar, atrás
de mim forma-se uma colmeia humana forçando-me para dentro. Consigo
um lugar vago ao lado da janela, coisa rara.
Encosto minha cabela no vidro do
ônibus. Minha cabeça pesa. Minhas pálpebras pesam. O movimento faz
minha cabeça bater constantemente no vidro, incomodando-me a ponto
de não conseguir dormir. Desisto. Arrumo-me e encosto minha cabeça
na cabeceira dura do banco. Passam alguns minutos. A moça que está
do meu lado se levanta e em seu lugar senta-se Yasujiro Ozu.
Não é muito rotineiro encontrar
Ozu no ônibus, sendo que o grande nipônico morreu faz cinquenta e
um anos. Olho-o desacreditando. Ele me olha. Sorri. Ozu tem um
sorriso puro que candidato, pedinte, universitário ou professor
nenhum jamais terá. Não aguento a pressão. Pergunto-lhe como é
ser Yasujiro Ozu. Ele me responde em português que já pouco
interessa o que foi, mas que valeu a pena. Ele me pergunta como é
ser um jovem que tem medo de tudo, inclusive de assumir seus medos.
Não sei responder. Ozu aponta
para minha mochila. Nela está colado um adesivo com a tal estrela
vermelha da hipocrisia. Ozu me pergunta, agora mais específico,
porque temo tanto a hipocrisia. Respondo-lhe o bordão que tanto já
repeti, que é melhor ser sínico do que hipócrita. O velho comenta
que nunca ouvira nada tão hipócrita quanto esta frase. Solta um
lamurio sobre o quão deprimente é o mundo dos vivos, mas que faria
de tudo para voltar a viver.
Ozu me encara e começa a me
acusar. Me acusa de ser o maior dos hipócritas, de ser o maior dos
egocentristas, de ter medo da rotina. Ozu se lembra do processo de
filmagem de sua obra-prima. Quantas vezes repetia cenas até ficar
plenamente satisfatória. Provoco-o dizendo que ele também tinha
medo da rotina. Filmara dezenas de filmes sobre casamento sem nunca
ter casado. Ozu sorri um sorriso cúmplice, respondendo que os
encantos da vida estão nos detalhes. Não entendo. Ele me diz que
vou demorar uma vida para compreender, talvez entenda apenas depois
que morrer.
Yasujiro me olha com firmeza
quando elogia meus vinte anos e lamenta minha ausência na juventude.
Diz que me preocupo demais em me preocupar de menos e, se tirasse
essa preocupação da minha pauta laboratorial de vida, aproveitaria
mais o tempo. Comenta sobre um amigo da juventude. Enquanto Ozu
perdia tempo falando, conversando, lendo sobre cinema, seu amigo
gastava suas preciosas vendo filme. Assim assistia o triplo de filmes
que o cineasta. Sinto-me injustiçado e lhe digo que quem perde tempo
são os outros em discussões que levará o nada a lugar nenhum, ou
os civis que se matam por suas ideologias. Ozu rebate me dizendo que
me preocupo tanto em parecer superior a eles que perco tão ou mais
tempo que essas pessoas.
O velho de repente se levanta.
Despede-se, dando tapas em meu ombro, fortes demais para serem sutis.
Ele fala “você tem que assistir meus filmes!” “você tem que
assistir meus filmes!” “você tem que descer agora!”. Abro o
olho e vejo o cobrador estapeando meu ombro. Acordo assustado e pulo
do coletivo.
É meia-noite e o clima está
agradabilíssimo. É prazeroso andar sentindo o vento e a temperatura
como deveria ser sempre. As narinas ainda ardem. O relógio aponta
que o ar está moderado. Não me sinto cansado; poderia andar a noite
toda. Mas logo chego em frente ao meu portão. Um volume de papéis
colantes estão na calçada fronte minha casa. Ele me olha com aquele
sorriso hipócrita. Ela me sorri com aquele dente torto. Fecho os
olhos e abaixo a cabeça. Lamento. Todos estão errados. Foda-se.
Devia ter ouvido o Ozu e parado de pensar nos outros. Eu também
estou errado. Só Ozu está certo. Cinco décadas de morte devem
trazer a sensatez ao ser humano.
Pelo menos estou em casa. Não me
contento e logo abro o laptop para me conectar com o mundo. Abro a
rede social. Não termina de carregar a página já aparecem quatro
militâncias enfadonhas a minha frente. É um amigo. A militância
tem cinco curtidas. Quem curtiu foram meus amigos. Cada um deles
compartilhou a militância e recebeu curtida de outros meus amigos. E
a militância se retroalimenta em um mundo fechado das mesmas
pessoas. Não aguento e fecho a página. Abro o site de vídeos para
relaxar. Penso nela e em como ficamos tão pouco tempo juntos esta
semana. Divago. Fecho a página. Por duas vezes nos últimos quatro
minutos fugi da rotina. Não tenho sono. Penso em Ozu. Penso nos
afoitos militantes brigando, nos amigos da cerveja, no Leonard Cohen,
no adesivo, na temperatura de amanhã, no filme de amanhã. Não sei
o que concluir. Respiro. Abro o editor de texto. Escrevo.