19 de outubro de 2014

A rotina tem seus encantos

O ar primaveril de outubro é praticamente abortado pela tórrida temperatura que assola a pele. É outubro, aquele mês em que tudo gasto o que não tenho e vejo tudo o que provavelmente jamais retornarei a ver. Oportunidades únicas de alimentação cinéfila proporcionadas apenas em outubro são obstaculizadas por um trajeto de transporte público de trinta e tantos quilômetros dramaticamente percorridos sob sufocantes trinta e tantos graus. Sobre os outros compromissos, deixe-os para algum dos outros onze meses do ano.
Saio de casa com minha pupila queimando fronte o ensolarado meio dia primaveril e deparo-me com aquele sorriso sínico estampado no adesivo azul verde e amarelo com o número de três quartos de minuto tão demagogicamente enfeitado quanto o sorriso do candidato colado em meu portão. Retiro brutalmente do ferro e rasgo com fúria antes de jogá-lo com a mesma fúria no chão. Dou meio passo para o meu destino e volto atrás, recolho os pedaços do adesivo e adentro novamente minha casa para jogá-lo no lixo.
Entro no ônibus. Os trinta e tantos graus multiplicam-se lá dentro. Sou o terceiro a entrar e escolho aquele banco ao lado do vidro aberto, pronto a receber o ar pútrido em minha face. Esperamos os bancos se preencherem para o motorista dar a partida. Uma a uma as pessoas se acomodam nos bancos logo enchendo o ônibus. Quase todos os bancos estão ocupados, mas o lugar ao meu lado continua vazio. Lotam todos exceto o meu. Entra uma linda garota, ameaça sentar-se, mas não, vai para o fundo do ônibus continuar em pé. Mais dois homens repetem a escolha da guria. Sou tão ameaçador assim para merecer tal afastamento?
O motorista gira a chave ligando o motor do ônibus quando entram quatro retardatários antes do veículo dar a partida. Entre eles está a mulher de meia idade que ocupa o lugar ao meu lado e logo tira da bolsa aquele livro que odeio ver qualquer pessoa lendo. Respiro. As narinas ardem.
Era para eu tirar o texto xerocado da bolsa e lê-lo para a aula da noite. Sei que o professor é irritantemente autoritário e serei humilhado se quando for interrogado por ele sobre o tema do texto, responder que não o li. Mas não leio. Pego aquele livro do Loyola que já li outrora e resolvi retirar da estante devido o calor. Logo desvio o olhar para o relógio da avenida; o pitoresco relógio que aponta em que condição está o ar da cidade. Ruim ele aponta. O grau da temperatura é inversamente proporcional à umidade do ar. Será que não verei país nenhum?
Pelo vidro do ônibus vejo quinze pessoas se esmurrando. Metade delas usa camisa vermelha. A outra metade divide-se em camisas da seleção e camisas sociais de corte elegantemente simétricos. O cenário é de guerra civil; uma guerra civil de quinze pessoas, armadas de bandeiras e se punhos cerrados. As pessoas no ônibus riem; os outros carros buzinam. Eles não ouvem as provocações. Estão concentrados em sua própria luta, em seus próprios objetivos. Eles querem mudar o mundo, cada qual a sua maneira, e cada maneira melhor que a outra. O ônibus segue, a minha vida continua e eles mantêm o quebra pau.
Horas depois desembarco. Um mendigo está parado na esquina elogiando os transeuntes. Já é rotina encontrá-lo. Da primeira vez me chamou de bonitão. Da segunda vez, de bonitão simpático. Da terceira vez, lhe dei dois reais, evento tão raro quanto um eclipse solar. Hoje ele pediu um abraço. Ninguém que passava lhe dava. Abracei-o, ao riso dos demais transeuntes. Este homem é esperto, sabe que um elogio é mais rentável que um pedido de ajuda. Espero que não vire moda entre os moradores de rua elogiar-me, eles se darão bem, mas ficarei sem troco.
Encaminho-me para a maldita fila antes da sessão. As narinas ardem, os olhos pedem lágimas. Pisco violentamente, fazendo os demais crerem que é tique. Entro na sala e a sessão começa. O ar está delicioso. Uma hora e trinta e nove minutos depois saio da sala. Sou o último; os demais saíram quatro minutos mais cedo, assim que começaram os créditos. Ficaram sem ver o enigmático chamado “M. Leonard Cohen. I need your help. Please call me as soon you can.” Esta frase no final dos créditos conseguiu chamar mais atenção que o filme em si.
Saio da sala e sigo para o banheiro lavar o rosto e encarar a fila da próxima sessão. Estou novamente dentro as sala. O ar já não está delicioso. Depois de uma hora de filme, minha atenção se volta a minha perna tremulante vítima da minha escolha de vestir uma bermuda. Incompreendo como passo frio sendo que lá fora está um verão primaveril. Termina a sessão. Assisto os créditos em pé, pois quero logo sair da sala. Nada de interessante, afinal os créditos estão em holandês e não compreendo nada. Ao me ver fora da sala estou novamente respirando a baforada do ar do outubro mais quente que se tem notícia.
Mas a noite logo cai, junto com a temperatura. Estou parado no ponto esperando o ônibus e observando aquele maltrapilho se aproximar de mim. Ele não vem me elogiar, nem ao menos pedir um abraço. Chega logo me abordando. Antes de terminar a frase corto-lhe pedindo desesperadamente um cigarro. Todos sabem que eu não fumo; ele não. Antes de eu saber se ele pediria dinheiro para comer, para tomar uma cachaça ou andar de ônibus, invetemos nossa posição. Agora sou eu o pedinte e ele o abordado. É curioso ver a situação provocada por esta ação. Sua cara, antes de humilde desânimo torna-se uma feição de mau humor. Ninguém gosta de ser abordado, é isso que tento passar para ele em segundo lugar. Em primeiro, obviamente, é que não tenho dinheiro nem para ter cigarro, quanto mais para ajudá-lo. Se o dono do sorriso estampado naquele adesivo ganhar as eleições, ele continuará na mesma situação. Se a adversária dele ganhar, tampouco mudará a vida daquele cidadão. Tenho a impressão que viverei mais tempo que ele; tenho a impressão que ele terá vivido mais que eu.
Livre dele, chega o ônibus ao qual embarco. Quarenta minutos depois, tempo suficiente de me alimentar de um pão murcho com frios de ontem estou no campus sabendo das humilhações que o professor doutor que carrega no peito o bottom vermelho com estrela branca simbolizando teoricamente o partido da cooperação, da ação social e da representação da minoria, mas, na prática, da hipocrisia, praticara com os alunos que não leram o texto. Prefiro não subir para a aula; antes uma falta que um constrangimento inútil.
Ela aparece no campo de visão e vem calorosamente me beijar. Não me sinto tão caloroso com tantas pessoas em volta; devo causar má impressão. Para os já não mais trinta e tantos graus, pero ainda vinte e muitos graus, minha ressalva gela ainda mais a temperatura. Desvio a atenção clamando desesperadamente por uma cerveja, a qual seis ou sete acompanham a iniciativa. E assim se constrói meu presente, base empírica de meu futuro profissional.
Enquanto cervejamos eles querem ouvir de mim alguma coisa engraçada. Eles confiam em mim nesse ponto: não querem se decepcionar com meus comentários que sempre provocaram risos. Mas desta vez não sai. Esforço-me. Sai aquela fala tão engraçada para mim e tão escandalosa para os ouvintes. Gritam-me machista. Desprezam e abominam e começa uma discussão infindável na mesa que não leva a lugar nenhum. Seria este mundo particular dos universitários comparável à alienação que eles tanto criticam? A realidade de quatro paredes onde tudo se debate, tudo se desconstrói, tudo se questiona sem fins práticos ou mudança efetiva alguma está há anos-luz da realidade do ônibus que tomei para vir para cá, ou da realidade da rua onde moro. Todos pensam no mundo como um todo, mas ninguém sai de seu mundo particular.
Na volta estamos a sós. Sou mais caloroso em comparação ao que pareci, mas estou longe. Ela toma uma coca cola, eu penso nos filmes de amanhã, na hora que terei que levantar da cama para ler um texto para não se humilhado e partir para mais duas ou três sessões gratuitas do outro lado da cidade. Quando percebo o tempo que ficamos juntos é mínimo. Logo desviamos nossos caminhos. Despeço-me. Despedaço-me.
No trajeto final da minha odisseia diária aguardo o último ônibus. Já é noite. A lua é a única luz que se vê no céu. O ar péssimo da cidade esconde os milhares de astros que poderiam estar presentes agora sobre mim. As luzes vêm da horizontal, e uma delas é o letreiro do biarticulado que para a alguns metros de meus pés. Sou o primeiro a entrar, atrás de mim forma-se uma colmeia humana forçando-me para dentro. Consigo um lugar vago ao lado da janela, coisa rara.
Encosto minha cabela no vidro do ônibus. Minha cabeça pesa. Minhas pálpebras pesam. O movimento faz minha cabeça bater constantemente no vidro, incomodando-me a ponto de não conseguir dormir. Desisto. Arrumo-me e encosto minha cabeça na cabeceira dura do banco. Passam alguns minutos. A moça que está do meu lado se levanta e em seu lugar senta-se Yasujiro Ozu.
Não é muito rotineiro encontrar Ozu no ônibus, sendo que o grande nipônico morreu faz cinquenta e um anos. Olho-o desacreditando. Ele me olha. Sorri. Ozu tem um sorriso puro que candidato, pedinte, universitário ou professor nenhum jamais terá. Não aguento a pressão. Pergunto-lhe como é ser Yasujiro Ozu. Ele me responde em português que já pouco interessa o que foi, mas que valeu a pena. Ele me pergunta como é ser um jovem que tem medo de tudo, inclusive de assumir seus medos.
Não sei responder. Ozu aponta para minha mochila. Nela está colado um adesivo com a tal estrela vermelha da hipocrisia. Ozu me pergunta, agora mais específico, porque temo tanto a hipocrisia. Respondo-lhe o bordão que tanto já repeti, que é melhor ser sínico do que hipócrita. O velho comenta que nunca ouvira nada tão hipócrita quanto esta frase. Solta um lamurio sobre o quão deprimente é o mundo dos vivos, mas que faria de tudo para voltar a viver.
Ozu me encara e começa a me acusar. Me acusa de ser o maior dos hipócritas, de ser o maior dos egocentristas, de ter medo da rotina. Ozu se lembra do processo de filmagem de sua obra-prima. Quantas vezes repetia cenas até ficar plenamente satisfatória. Provoco-o dizendo que ele também tinha medo da rotina. Filmara dezenas de filmes sobre casamento sem nunca ter casado. Ozu sorri um sorriso cúmplice, respondendo que os encantos da vida estão nos detalhes. Não entendo. Ele me diz que vou demorar uma vida para compreender, talvez entenda apenas depois que morrer.
Yasujiro me olha com firmeza quando elogia meus vinte anos e lamenta minha ausência na juventude. Diz que me preocupo demais em me preocupar de menos e, se tirasse essa preocupação da minha pauta laboratorial de vida, aproveitaria mais o tempo. Comenta sobre um amigo da juventude. Enquanto Ozu perdia tempo falando, conversando, lendo sobre cinema, seu amigo gastava suas preciosas vendo filme. Assim assistia o triplo de filmes que o cineasta. Sinto-me injustiçado e lhe digo que quem perde tempo são os outros em discussões que levará o nada a lugar nenhum, ou os civis que se matam por suas ideologias. Ozu rebate me dizendo que me preocupo tanto em parecer superior a eles que perco tão ou mais tempo que essas pessoas.
O velho de repente se levanta. Despede-se, dando tapas em meu ombro, fortes demais para serem sutis. Ele fala “você tem que assistir meus filmes!” “você tem que assistir meus filmes!” “você tem que descer agora!”. Abro o olho e vejo o cobrador estapeando meu ombro. Acordo assustado e pulo do coletivo.
É meia-noite e o clima está agradabilíssimo. É prazeroso andar sentindo o vento e a temperatura como deveria ser sempre. As narinas ainda ardem. O relógio aponta que o ar está moderado. Não me sinto cansado; poderia andar a noite toda. Mas logo chego em frente ao meu portão. Um volume de papéis colantes estão na calçada fronte minha casa. Ele me olha com aquele sorriso hipócrita. Ela me sorri com aquele dente torto. Fecho os olhos e abaixo a cabeça. Lamento. Todos estão errados. Foda-se. Devia ter ouvido o Ozu e parado de pensar nos outros. Eu também estou errado. Só Ozu está certo. Cinco décadas de morte devem trazer a sensatez ao ser humano.

Pelo menos estou em casa. Não me contento e logo abro o laptop para me conectar com o mundo. Abro a rede social. Não termina de carregar a página já aparecem quatro militâncias enfadonhas a minha frente. É um amigo. A militância tem cinco curtidas. Quem curtiu foram meus amigos. Cada um deles compartilhou a militância e recebeu curtida de outros meus amigos. E a militância se retroalimenta em um mundo fechado das mesmas pessoas. Não aguento e fecho a página. Abro o site de vídeos para relaxar. Penso nela e em como ficamos tão pouco tempo juntos esta semana. Divago. Fecho a página. Por duas vezes nos últimos quatro minutos fugi da rotina. Não tenho sono. Penso em Ozu. Penso nos afoitos militantes brigando, nos amigos da cerveja, no Leonard Cohen, no adesivo, na temperatura de amanhã, no filme de amanhã. Não sei o que concluir. Respiro. Abro o editor de texto. Escrevo.

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