28 de dezembro de 2015

Centanni + 20, ou "Il Cinema é un'invenzione senza avvenire"

Na noite de 28 de dezembro de 1895 Auguste e Louis Lumière apresentaram algumas imagens em movimento a partir de sua nova invenção. Era a primeira sessão de cinema de todas. Os próprios irmãos diziam que era uma invenção sem futuro. passados 120 anos, talvez eles tinham razão.
Que porra é essa?” foi o pensamento silencioso do garoto em pé no trem ao olhar para o tablet da garota sentada no banco abaixo dele. A imagem mostrava uma paisagem árida; uma colina com uma trilha em “Z” e uma única árvore no topo. Na trilha corria um menino de blusa vermelha. A seguir a cena mostrava o menino correndo por outros cenários não menos áridos. O garoto que observava não podia escutar a trilha oriental que acompanhava a cena, cuja garota ouvia no fone, mas a cena não deixava de ser emblemática.
Quando a garota desligou o tablet e prenunciou seu desembarque do vagão, o garoto não deixou sua timidez vencê-lo como outras vezes e tomou coragem de perguntar o que era aquele vídeo que ela assistia com tanta atenção. Ao respondê-lo com o nome do filme iraniano de seu diretor predileto daquela semana, a garota fez o inerte rapaz se apaixonar imediatamente. Não se apaixonara pelo gosto em comum, mas pelo exotismo que ela ali representava. Ele pediu seu número de telefone. Ela obviamente passou-lhe um número errado e depois que saiu metrô certamente os dois jamais se veriam novamente. Da paixão pela garota, o rapaz faria nutrir aos poucos uma nova paixão.
Aos dezessete anos ela era o tipo mais insosso daquela geração. Recém-descoberta a Nouvelle Vague, ela seguia o padrão intragável de jovem cinéfila que conhecera “Os Sonhadores” pelo Tumblr. Mantinha uma franja a la Anna Karina e usava vestidos listrados aproveitando-se da mesada de seus pais para colecionar pôsteres e visitar galerias de arte com sua câmera polaroid como se estivesse nos anos sessenta. Ignorava a qualidade de seu iPhone, pois o vintage era o charme. Tinha poucos amigos; os que andavam junto a ela tinham o mesmo berço de quarto grande no décimo quinto andar de um bairro nobre e ampla variação de camisetas do Che Guevara no guarda-roupa.
Ele pelo contrário, com sua feição de jovem desempregado parecia mais um daqueles personagens do Neo-realismo vagando de canto a canto da cidade procurando emprego. Era seu último ano no colégio e precisava imediatamente de grana para bancar uma faculdade a posteriori, já que sua inteligência mediana não garantiria um ingresso numa universidade pública. Naquele dia do trem vinha de uma entrevista para mais um desses serviços telefônicos que prometiam ser o mercado de trabalho de uma juventude que de promissora possuía apenas o antônimo da palavra. Não conhecia filme iraniano. Seu pífio conhecimento cinematográfico resumia-se aos besteiróis infantis das adaptações dos besteiróis infantis das HQs que era viciado.
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Ora estamos agora três anos depois acompanhando o jovem rapaz em um trabalho de campo para a sua faculdade. Depois de ver aquela garota, começou uma odisseia de requalificação de ser humano que mudou sua vida. Quis saber mais sobre cinema; entrou em alguns blogs e fóruns e passou a baixar filmes. Começou pelo beabá que todos do século XXI percorrem. Tarantino leva a De Palma que leva a Hitchcock, etc. Tarantino leva a Leone que leva a Kurosawa, etc. Tarantino leva a Nova Hollywood que leva a Nouvelle Vague que leva ao Neorrealismo que leva ao Realismo Poético que leva ao Cinema Clássico que leva ao primeiro cinema sonoro que leva ao último cinema mudo, etc. E assim viveu seu ano de graduação em administração de empresas em uma universidade barata antes de descobrir o cinema pernambucano contemporâneo que o levaria a trancar o curso no fim do segundo semestre para prestar um novo vestibular para cinema. Ignorava a improbabilidade de sobrevivência que esta escolha acarretaria, mas assim o fez.
Ela continuava a viver por viver. Empregada por um amigo de seu pai em um serviço de seis horas próximo aos cinemas saía sempre dez minutos antes do fim do expediente para pegar a primeira sessão noturna. E depois voltava para casa para assistir alguns de seus DVDs. Em três anos a garota passara por uma seleção ampla de filmes cults que fizeram de si uma persona um pouco menos caricata, mas não menos insuportável. Em três anos mudara de estilo visual inúmeras vezes e no momento que a acompanhamos ela mantém um cabelo de Rosemary gestante e usa roupas masculinas like a Annie Hall demonstrando que vivia uma fase woodyalleana. Lia como um raio, trocando de livros a cada dois dias. Mantinha certas amizades que também frequentavam os mesmos lugares, pouco, pouquíssimo evoluíra desde o começo do relato.
Comédia Musical
Via tudo agora com um olhar cinematográfico aquele garoto. Seu bairro que sempre detestou recebia agora em sua mente um toque de suburbano. Em sua imaginação um traveling sempre acompanhava seu campo de visão pelas ruas vazias de carro e cheias de gente. Imaginava fazer um grande épico contando sua ascensão desde os tempos que brincava de bola sem camisa com os pivetes que hoje fumam maconha na porta dos prédios do conjunto habitacional. Pensava em que tipo de lente seria o mais crível para captar o pôr do sol sobre os barracos da favela que ele só agora achava lindo.
Ela possuía igual tamanha imaginação. Certa vez ao sair de uma sessão de cineclube deu de sapatear no saguão, esquecendo-se da escadaria, que acometer-lhe-ia um joelho rasgado e um dia de licença no trabalho, que possibilitou-lhe assistir incríveis sete filmes em casa. Quando – raramente – arrumava o quarto cantava, como se fosse uma dona de bordel dos anos cinquenta ajeitando as colchas para ajeitar as coxas na sequência.
Luz
Vinde a mim todo o esplendor
Vinde a mim todo o olhar que recai
Sobre o que vides a mim e te atrai
Vinde a mim
E vai
(…) inventava ela na hora para incompreensão de seus pais que da porta pra fora ouviam.
DRAMA
Certa noite ela foi em uma daquelas sessões da madrugada também conhecidas como “Noitão”. Os filmes eram de um mesmo diretor lá da Dinamarca. Após uma noite com três filmes que de tanto pesar secou-lhe as lágrimas, ela não conseguiu dormir. Seus olhos secos e a mente ininterrupta fizeram-na ler mais do que estava acostumada nas noites seguintes. Algo acontecia em seu cérebro. Em menos de uma semana trocou de personalidade. Já não mais cantava versos sem sentido ou saltitava pela rua. Era como se tivesse comprado um pacote completo. Café. Signo. [Gêmeos]. Ansiedade. Feminismo. Pessimismo. Mais café. Mais ansiosa ficava. Em uma semana, PLAU: constata a partir de um livro que está com depressão.
Ela não busca ajuda, não comenta a ninguém. Ela fala com um colega que diz para outro amigo que tem um contato com o irmão de alguém que tem uma arma. Em poucos dias ela está portando ilegalmente uma pistola de 40 onde deixaria carregada apenas uma bala. Não ia ter uma morte desesperada ou sem graça. Mesmo abraçada a melancolia previa sua morte como algo glorioso, nem que fosse apenas para si. Iria em todas as sessões que conseguisse. Dane-se o emprego, arruma-se dinheiro de outra forma, pensa-se nisso depois. A cada sessão um filme. E naquele que seria o melhor filme já visto ela atiraria contra sua própria cabeça.
Aproveitava que os cinemas ainda são os únicos lugares que você pode entrar sem passar por uma revista ou por um detector de metais e sempre ia para a sessão com sua pistola na bolsinha. Passaram-se meses. Nada. Desilusões, felicidades. Em alguns momentos chegava até mesmo a desistir da ideia da morte, o quão bom era o filme que tinha acabado de assistir. Outrora, desejava gastar aquela bala atirando contra a tela. Drama, guerra, horror, documentários e outros que qualquer um seria incapaz de definir em apenas um gênero.
Eis que em uma tarde ela está na segunda poltrona do cinema para assistir a estreia de uma comédia. Sabia que dali sairia viva. Mas as risadas foram tantas e tão inesperadas que em certo momento não tinha mais certeza de nada. Aquilo era de outro mundo. Jamais tivera sensação parecida a não ser assistindo a caixa de Charlie Chaplin em sua pré adolescência. Na subida dos créditos, aplausos. Ela estava perplexa. Era aquele o momento. Ao final do último crédito, quando os funcionários da limpeza aguardavam os dois últimos espectadores saírem da sala, ela pegou sua arma e disparou contra sua cabeça. Não veria os elogios que a crítica faria ao filme no dia seguinte, chamando o diretor de maior gênio da comédia desde o surgimento do cinema sonoro.
terror
Vida. Não é coisa apenas de texto. Geralmente acontece essas bizarrices na vida real também. O único espectador que estava naquela sala àquela altura dos créditos é nosso herói. Uma das protagonistas está morta, então sobra-lhe o bastão para continuar como apoio para o resto do relato. Mas faltar-lhe-á apoio psicológico para superar a imagem dos miolos estourando exatamente três poltronas a sua frente. Não, ele jamais saberá que aquele cadáver era daquela menina que um dia indiretamente mudara sua vida anos atrás em um metrô. Ele jamais veria seu corpo jazendo no carpete da sala; obviamente ele saiu correndo e gritando do cinema.
A psicose nasceu naquele dia. O rapaz está agora dirigindo seu carro pela cidade. Não se sabe como ele comprou, desde quando ele o tem, mas ele está aí. Não demora muito ele bate em uma quitanda derrubando todas as frutas e verduras. Ele agora está correndo a pé, desesperado. Quando encontra uma saída do metrô não pensa duas vezes. Praticamente se joga pela escadaria alcançando a superfície da estação em pouca fração de segundo. Agora ele já está dentro de um vagão, sentado. Compra uma água com um ambulante. Está um pouco mais calmo. Já é a quarta volta dele no metrô. Por não ser horário de pico não é de se estranhar que ele não tenha sido enxotado por um segurança.
Surto. Ele se levanta e pensa que é Buster Keaton. Vai bailando pelo vagão segurando nos pega-mãos até que prende seu braço entre um balaústre e a parede do trem imaginando estar em uma comédia muda. O corpo de bombeiros chega depois dos passageiros tentarem em vão lhe socorrer. Ele está absolutamente fora de si enquanto é levado para um hospital para se recompor.
Dias depois, com sua família, o rapaz ouve a voz de seu pai dando um sermão em sua mãe na cozinha dizendo que ela era a culpada pela situação do menino. Jamais deveria ter permitido ele estudar porcarias, aquilo só fazia ficar louco. Enquanto eles discutiam, o garoto levantou-se e saiu pela porta rumando sem rumo pela rua. Parou em frente a sala de cinema. Passaria dali em instantes um filme que desejava há tempos assistir. Mas não entrou. Continuou andando sem um destino certo.


Os dois protagonistas mortos. Não faria sentido algum prosseguir o relato se não estivéssemos no período que estamos. Tudo é contemporâneo, tudo é experimentação. Em compensação, quase nada é bom. Mas a negação ao ponto final deve-se a urgência do tema a ser tratado que foi a conferência de um cineasta catalão naquela mesma noite. Mesmo que nada tenha a ver com as duas figuras que heroicizaram este texto, devemos tratar, tamanha foi sua importância para a vida contínua do cinema mundial.
O polêmico diretor chamou a imprensa. Suas palavras foram gravadas e transcritas quase que como um ensaio universal sobre o cinema. Mais do que um relato jornalístico, o que aconteceria ali seria um filme documental, ora pois o próprio diretor chamou sua equipe para filmar aquele espetáculo que prometia.
Quando à primeira pergunta, a propósito de seu último longa foi feita, sua resposta desviou para o caminho que queria. Após falar que adorava o filme, mas detestara todos que nele participaram, concluiu que o ser humano era desprezível, ao contrário do cinema. Nada na humanidade importava, apenas a arte, o cinema. Intrigados os jornalistas começaram a disparar; para sua surpresa, o veterano cineasta rebatia com uma voracidade igual ou maior. Um jornalista francês interrogou sobre o sentido de fazer arte a não ser para a própria humanidade. O catalão respondeu que a arte não necessitava de sentido e a seguir perguntou se a humanidade alguma vez fora tocada pela arte. Ao silêncio do jornalista ele continuou – apontando o dedo para o francês – falando de Guernica e da Batalha de Argel que o “seu país” tanto adorara. Qual o sentido político dessas obras? Existia alguma humanidade, ou era a arte pela arte?
Quando um castelão afirmou que ora, o cinema tinha sido criado pelo homem, era idiotice o que ele dizia, o diretor respondeu que a bíblia também tinha sido escrita pelas mãos do homem. E quando um americano lhe questionou acerca das pessoas do filme, o catalão foi enfático: “Brando era um estuprador. Mas sua arte, bela. Polanski? Pedófilo, mas sua arte, bela. Eu? Ora, orem para mim, depois vejam meu filme. Todos os homens são merdas, incluindo vocês. Todos viraremos merda, mas o cinema fica. O cinema vive. O cinema persiste, quer vós quereis, ou não. Acima de nós tudo, acima de tudo, o cinema, a arte.”
O grand finale. Ninguém sabia que a versão lunática do cineasta, com trinta anos de carreira e oito filmes, todos verdadeiras obras-primas do cinema espanhol pendia para o suicídio e o terrorismo. Debaixo de sua mesa havia uma mochila com uma bomba química. Ao encerrar a coletiva mandando todos que estavam ali se foderem, ele pisou com força na mochila impulsionando o volume que liberara um gás tóxico que em poucos segundos destroçara o cineasta, todas as centenas de jornalistas e funcionários do prédio. Nada de explosão cinematográfica como quereria o leitor imaginando um grand finale. Ora, o cineasta pensara em tudo e queria que o material se preservasse intacto para ser lançado como obra de arte. Assim o fez.
Mas não havia ninguém para montar o material filmado. E ninguém que quisesse assistir. A obra estava tão morta quanto seu criador.