Você
já foi ao cinema de manhã? Em São Paulo isso é possível. E garanto que é uma
experiência e tanto sair de casa e pegar uma sessão às 10 da manhã. De quando
em quando o Reserva Cultural faz isso. Além do filme francês de excelente
qualidade eles disponibilizam um café da manhã à francesa com croissants e
pains du chocolat. Tudo sai por apenas 5 reais e acontece todo último domingo
do mês. Um requinte que você só encontra na Paulista.
Após
a sessão terminar, por volta das 12h30, a fome bate. Num domingo ensolarado
como deve estar, você procura algum estabelecimento aberto e encontra a
belíssima rede de fast food Subway, ao lado do Reserva, ali no Top Center. Os
famosos pães de 15 ou 30 centímetros são acompanhados de recheios à La carte, e
você pode fazer as combinações mais saborosas que puder. O preço salgado é
recompensado no molho agridoce. Sobremesa? Ao lado do Subway tem uma Starbucks
onde você pode tomar desde um saboroso café até um grandioso Milk shake
denominado Frapuccino.
Feita
sua refeição, hora de aproveitar a deliciosa tarde de domingo. Se a Paulista
nos disponibiliza sombras com seus altos prédios, a paralela alameda Santos nos
proporciona mais arborização. Além disso a calçada é menos movimentada e os
apartamentos que não saem por menos de 20 mil reais o metro quadrado encanta
nossos olhos.
No
cruzamento com a Brigadeiro você tem duas alternativas: ou descer rumo o Parque
do Ibirapuera ou seguir reto com destino ao Paraíso. Aconselho a segunda opção,
pois você terá mais o que fazer do que simplesmente caminhar ou pedalar. No fim
da Alameda Santos, entre na Rua Rafael de Barros em direção a Praça Oswaldo
Cruz. Lá, tem o Shopping Pátio Paulista, onde você pode usar seu cartão de
crédito na inúmeras lojas de alto padrão e sair com sua sacola cheia de
produtos como Chanel ou Armani. Ao sair de lá depois de algumas horas,
atravesse o Viaduto Beneficência Portuguesa e pare um pouco no Centro Cultural.
É um
dos lugares mais bacanas que existe nessa cidade. Há 30 anos um reduto para
nós, meros mortais que apreciam arte em todas as formas. Lá também tem um
enorme acervo bibliográfico num anexo da Biblioteca Mário de Andrade. Milhares
de títulos para te entreter, ensinar e educar. Vale a pena passar um tempo por
lá, pegar um livro, deitar no gramado e desfrutá-lo ao sol do fim da tarde.
Descansado
e letrado, aconselho-te a andar um pouco mais para descobrir as maravilhas que
este roteiro tem a apresentar. Do outro lado da Rua Vergueiro, atrás da entrada
da estação tem uma bela praça com uma igreja, um colégio e um teatro. Os três
denominados Santo Agostinho. A igreja uma belezinha, toda feita a tijolos. A
praça tão tranqüila que dá vontade de passar horas ali.
Mas
não pare. Vá em direção a Rua Castro Alves. Lá tem condomínios belíssimos, um
mais luxuoso que o outro. Fora a arborização. Dá vontade de seguir andando pela
rua inteira, até chegar ao Parque da Aclimação onde ela desemboca. Mas o melhor
mesmo é descer na enorme Rua Tamandaré.
É
uma rota curiosíssima. Lá, no alto da Tamandaré, de encontro com a Castro
Alves, hospitais, teatros, condomínios de alta classe. Ao descer os 500 metros
da ladeira, vamos a paisagem se transformar aos poucos. Dos altos condomínios
às casas grandes, às casas menores, aos cortiços, até o estopim que se dá à Rua
do Glicério.
A
Rua do Glicério fica a menos de 1 km da Rua Castro Alves. Mas a anos luz da
realidade da outra. A Baixada do Glicério é o bairro mais genuinamente central
de São Paulo. Localiza-se numa posição estratégica colado à Praça da Sé,
Liberdade, Cambuci e parque Dom Pedro. Boa parte de suas casas são históricas.
Assim como as fábricas, que ajudaram na formação de São Paulo. As casas hoje
são cortiços que abrigam dezenas de famílias, as fábricas, redutos abandonados.
Não
existe arborização na Rua do Glicério. Nem base de polícia nem segurança
privada, o que há de sobra na Rua Castro Alves ou na Alameda Santos. Mas há
lixo, entulho, abandono e pessoas. Pessoas diferentes daquelas que estavam 700
metros acima da Rua Tamandaré. Pessoas com modos diferentes, olhares
diferentes, roupas diferentes, cor diferente. Pessoas que dão medo à outras
pessoas, que assustam aquelas que estão 700 metros acima. A cor dessas pessoas
reflete 300 anos de escravidão e outros 120 de abolição mal planejada mais a
fumaça jogada pelo carro das pessoas que não carregam a cor dessa história e
vive no alto da Rua Tamandaré.
A
melancolia é um planeta que se esconde atrás do sol. O pessimismo é uma rua que
se sombreia debaixo de um viaduto. A rua Glicério passa por baixo do viaduto
Glicério, eixo principal da ligação Leste Oeste das vias. Milhares de veículos
passam por hora por cima dele. Abaixo, dezenas, centenas de pessoas vivem. A
frente da visão horrível de todas aquelas pessoas tem duas igrejas. Enormes,
ocupam um quarteirão inteiro. Uma católica e outra Paz e Amor. De cima do
viaduto dá para se ver o prédio da UNIP Vergueiro que fica ao lado do Centro
Cultural. Não parece a mesma cidade, o mesmo país.
Após
você percorrer todo este percurso que esse guia mostrou, atravesse o viaduto pela
Rua Glicério. No centro da via, quando você está exatamente no meio do viaduto,
o semáforo dos carros fecha. A multidão de pessoas estranhas à você te cerca e
você não tem pra onde correr. Você acaba se tornando vítima.
Mas
será mesmo? Se essas pessoas vivem em um submundo tão aterrorizante há menos de
um quilometro da classe A da sociedade, quem é a verdadeira vítima? O sistema
consumista e o mundo capitalista que (sobre)vivemos hoje mantém pessoas no
insuportável e no comodismo. A Rua Glicério está lá, aos olhos de todos, mas
será mesmo que ninguém enxerga ou ninguém quer enxergar? Acredito ser o
primeiro a propor um roteiro turístico que abrange aquela região. Fazer este
caminho para mim é um balde de água fria nas crenças de qualquer divindade, mas
principalmente na própria humanidade. Como disse, logo em frente o ponto
demoníaco existem dois gigantescos templos religiosos.
Discutimos
religião, futebol, limite no humor, novela e outras efemeridades, protestamos
por legalizações, melhorias em determinados setores e outras frivolidades e
esquecemos do mais simples. Das verdadeiras necessidades enquanto ser humano. O
que separa você que esbanja vivacidade ao comer num Subway daquele que não tem
do que se alimentar? No mais, a madeira que poderão comprar para o seu caixão.
O sistema quer que continue assim e por muito assim será. Quanto mais pessoas
se isolarem abaixo do viaduto, quanto mais fumaça de crack entrar para nosso
pulmão melhor será para eles. Somos todos vítimas, ninguém tem para onde
correr. Faz 124 anos que aboliram a escravatura. Faz 22 anos que Jorge Furtado
filmou Ilha das Flores. O que mudou de lá pra cá?
O
fim do roteiro é atravessar o viaduto e chegar em um ponto mais tranquilo, a
Rangel Pestana é um bom lugar. De lá dá para ver ao longe, lá no alto a Rua
Castro Alves e a paisagem encharcada de arranha-céus. É parar e olhar para
trás. E pensar em muitas coisas que vem a cabeça depois de elaborar tal
roteiro. Difícil encontrar uma solução, mas vontade de exteriorizar todos os
seus sentimentos, vomitar todo seu pessimismo de alguma forma. Encontrei essa
forma aqui nessas palavras. O que nos resta e procurar um lugar para se
locomover para casa e ver ou ouvir alguma obra de arte na doce ilusão de que a
humanidade tem solução.
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