30 de julho de 2012

Um roteiro que todo paulistano deveria fazer


Você já foi ao cinema de manhã? Em São Paulo isso é possível. E garanto que é uma experiência e tanto sair de casa e pegar uma sessão às 10 da manhã. De quando em quando o Reserva Cultural faz isso. Além do filme francês de excelente qualidade eles disponibilizam um café da manhã à francesa com croissants e pains du chocolat. Tudo sai por apenas 5 reais e acontece todo último domingo do mês. Um requinte que você só encontra na Paulista.

Após a sessão terminar, por volta das 12h30, a fome bate. Num domingo ensolarado como deve estar, você procura algum estabelecimento aberto e encontra a belíssima rede de fast food Subway, ao lado do Reserva, ali no Top Center. Os famosos pães de 15 ou 30 centímetros são acompanhados de recheios à La carte, e você pode fazer as combinações mais saborosas que puder. O preço salgado é recompensado no molho agridoce. Sobremesa? Ao lado do Subway tem uma Starbucks onde você pode tomar desde um saboroso café até um grandioso Milk shake denominado Frapuccino.

Feita sua refeição, hora de aproveitar a deliciosa tarde de domingo. Se a Paulista nos disponibiliza sombras com seus altos prédios, a paralela alameda Santos nos proporciona mais arborização. Além disso a calçada é menos movimentada e os apartamentos que não saem por menos de 20 mil reais o metro quadrado encanta nossos olhos.

No cruzamento com a Brigadeiro você tem duas alternativas: ou descer rumo o Parque do Ibirapuera ou seguir reto com destino ao Paraíso. Aconselho a segunda opção, pois você terá mais o que fazer do que simplesmente caminhar ou pedalar. No fim da Alameda Santos, entre na Rua Rafael de Barros em direção a Praça Oswaldo Cruz. Lá, tem o Shopping Pátio Paulista, onde você pode usar seu cartão de crédito na inúmeras lojas de alto padrão e sair com sua sacola cheia de produtos como Chanel ou Armani. Ao sair de lá depois de algumas horas, atravesse o Viaduto Beneficência Portuguesa e pare um pouco no Centro Cultural.

É um dos lugares mais bacanas que existe nessa cidade. Há 30 anos um reduto para nós, meros mortais que apreciam arte em todas as formas. Lá também tem um enorme acervo bibliográfico num anexo da Biblioteca Mário de Andrade. Milhares de títulos para te entreter, ensinar e educar. Vale a pena passar um tempo por lá, pegar um livro, deitar no gramado e desfrutá-lo ao sol do fim da tarde.

Descansado e letrado, aconselho-te a andar um pouco mais para descobrir as maravilhas que este roteiro tem a apresentar. Do outro lado da Rua Vergueiro, atrás da entrada da estação tem uma bela praça com uma igreja, um colégio e um teatro. Os três denominados Santo Agostinho. A igreja uma belezinha, toda feita a tijolos. A praça tão tranqüila que dá vontade de passar horas ali.
Mas não pare. Vá em direção a Rua Castro Alves. Lá tem condomínios belíssimos, um mais luxuoso que o outro. Fora a arborização. Dá vontade de seguir andando pela rua inteira, até chegar ao Parque da Aclimação onde ela desemboca. Mas o melhor mesmo é descer na enorme Rua Tamandaré.

É uma rota curiosíssima. Lá, no alto da Tamandaré, de encontro com a Castro Alves, hospitais, teatros, condomínios de alta classe. Ao descer os 500 metros da ladeira, vamos a paisagem se transformar aos poucos. Dos altos condomínios às casas grandes, às casas menores, aos cortiços, até o estopim que se dá à Rua do Glicério.

A Rua do Glicério fica a menos de 1 km da Rua Castro Alves. Mas a anos luz da realidade da outra. A Baixada do Glicério é o bairro mais genuinamente central de São Paulo. Localiza-se numa posição estratégica colado à Praça da Sé, Liberdade, Cambuci e parque Dom Pedro. Boa parte de suas casas são históricas. Assim como as fábricas, que ajudaram na formação de São Paulo. As casas hoje são cortiços que abrigam dezenas de famílias, as fábricas, redutos abandonados.

Não existe arborização na Rua do Glicério. Nem base de polícia nem segurança privada, o que há de sobra na Rua Castro Alves ou na Alameda Santos. Mas há lixo, entulho, abandono e pessoas. Pessoas diferentes daquelas que estavam 700 metros acima da Rua Tamandaré. Pessoas com modos diferentes, olhares diferentes, roupas diferentes, cor diferente. Pessoas que dão medo à outras pessoas, que assustam aquelas que estão 700 metros acima. A cor dessas pessoas reflete 300 anos de escravidão e outros 120 de abolição mal planejada mais a fumaça jogada pelo carro das pessoas que não carregam a cor dessa história e vive no alto da Rua Tamandaré.

A melancolia é um planeta que se esconde atrás do sol. O pessimismo é uma rua que se sombreia debaixo de um viaduto. A rua Glicério passa por baixo do viaduto Glicério, eixo principal da ligação Leste Oeste das vias. Milhares de veículos passam por hora por cima dele. Abaixo, dezenas, centenas de pessoas vivem. A frente da visão horrível de todas aquelas pessoas tem duas igrejas. Enormes, ocupam um quarteirão inteiro. Uma católica e outra Paz e Amor. De cima do viaduto dá para se ver o prédio da UNIP Vergueiro que fica ao lado do Centro Cultural. Não parece a mesma cidade, o mesmo país.

Após você percorrer todo este percurso que esse guia mostrou, atravesse o viaduto pela Rua Glicério. No centro da via, quando você está exatamente no meio do viaduto, o semáforo dos carros fecha. A multidão de pessoas estranhas à você te cerca e você não tem pra onde correr. Você acaba se tornando vítima.

Mas será mesmo? Se essas pessoas vivem em um submundo tão aterrorizante há menos de um quilometro da classe A da sociedade, quem é a verdadeira vítima? O sistema consumista e o mundo capitalista que (sobre)vivemos hoje mantém pessoas no insuportável e no comodismo. A Rua Glicério está lá, aos olhos de todos, mas será mesmo que ninguém enxerga ou ninguém quer enxergar? Acredito ser o primeiro a propor um roteiro turístico que abrange aquela região. Fazer este caminho para mim é um balde de água fria nas crenças de qualquer divindade, mas principalmente na própria humanidade. Como disse, logo em frente o ponto demoníaco existem dois gigantescos templos religiosos.

Discutimos religião, futebol, limite no humor, novela e outras efemeridades, protestamos por legalizações, melhorias em determinados setores e outras frivolidades e esquecemos do mais simples. Das verdadeiras necessidades enquanto ser humano. O que separa você que esbanja vivacidade ao comer num Subway daquele que não tem do que se alimentar? No mais, a madeira que poderão comprar para o seu caixão. O sistema quer que continue assim e por muito assim será. Quanto mais pessoas se isolarem abaixo do viaduto, quanto mais fumaça de crack entrar para nosso pulmão melhor será para eles. Somos todos vítimas, ninguém tem para onde correr. Faz 124 anos que aboliram a escravatura. Faz 22 anos que Jorge Furtado filmou Ilha das Flores. O que mudou de lá pra cá?

O fim do roteiro é atravessar o viaduto e chegar em um ponto mais tranquilo, a Rangel Pestana é um bom lugar. De lá dá para ver ao longe, lá no alto a Rua Castro Alves e a paisagem encharcada de arranha-céus. É parar e olhar para trás. E pensar em muitas coisas que vem a cabeça depois de elaborar tal roteiro. Difícil encontrar uma solução, mas vontade de exteriorizar todos os seus sentimentos, vomitar todo seu pessimismo de alguma forma. Encontrei essa forma aqui nessas palavras. O que nos resta e procurar um lugar para se locomover para casa e ver ou ouvir alguma obra de arte na doce ilusão de que a humanidade tem solução.


Nenhum comentário:

Postar um comentário