28 de março de 2013

O som ao redor


Fonte: http://www.osomaoredor.com.br/fotos
O primeiro longa-metragem de Kleber Mendonça Filho foi uma das últimas grandes experiências que tive com a sétima arte. Saí do cinema estarrecido com dezenas de pensamentos e angústias que o filme provoca. É uma obra-prima que instantaneamente entrou no meu Top 5 do cinema nacional. Uma estranha e inédita sensação de “claustrofobia social” me perpassou ao ver todos aqueles personagens extremamente perdidos na realidade brasileira dessa “nova classe média” em uma metrópole em crescimento que é Recife. Não tenho dúvida em dizer que O Som Ao Redor mudou minha perspectiva de como é viver em um ambiente urbano, sendo pertencente à nova classe C.

Levanto diariamente às 7 e meia da manhã. Durante uns quarenta minutos, eu “acordo”. Após esse tempo, quando a minha mente finalmente está situada ao dia em questão, me retiro a um ambiente tranquilo da minha casa para fazer as leituras que a minha faculdade impõe. Mergulho durante três, quatro, cinco horas na historiografia que trata os séculos XVII, XVIII e XIX, na Europa e nas Américas. São textos acadêmicos, difíceis, em geral (infelizmente) não acessíveis ao público que se encontra fora das universidades e que exigem absoluta concentração, afinal, muito além de uma leitura, é um estudo.

Moro no ponto alto de uma rua movimentada. Abaixo, quatro ruas menores e uma grande avenida paralelas ao meu endereço. A janela do cômodo onde estudo dá uma visão geral desse cenário. Pontualmente às 9 horas e 25 minutos, surge da avenida lá embaixo um zunido insuportável, como se surgisse das profundezas do inferno. Aos poucos o zunido toma forma e é possível reconhecer o que se trata. É o caminhão de gás subindo da avenida para a rua de cima.

Demorei alguns meses para compreender a letra da nova música do caminhão de gás. Como o mais insuportável dos hits de verão, depois que descobri do que se tratava, ela se impregnou em mim e agora é impossível não ouvir o som por perto e não cantarolar se tem o lacre verde da BR Petrobrás, pode confiar, é Liquigás. E durante a meia hora que o caminhão de gás atravessa cada rua paralela e por fim a minha rua, é impossível se concentrar e continuar qualquer leitura. Vou tomar um café, ver alguma matéria no jornal matinal ou tweetar alguma coisa.



Desde que assisti O Som Ao Redor (pra falar a verdade, já um pouco antes, a sonoplastia de Um Alguém Apaixonado tinha me feito pensar a respeito) passei a reparar mais em como nossa vida na cidade é barulhenta. E nas leituras matinais em minha casa isso fica muito evidente. Um latido de um cachorro, um martelo, ou uma marreta trabalhando furiosamente, o motor de um carro velho, o motor de um carro novo, o freio do ônibus que para no ponto de ônibus em frente a minha casa, as portas desse ônibus se abrindo, as mesas sendo postas no bar da vizinhança, o sino do carrinho de Icegurt, a furadeira, o passarinho que frequenta a árvore do quarteirão, até as vozes da rua e um zunido infinito do todo que é a mistura de todos os sons. Seria o som da vida?

Quando saio de casa e vou para o centro - onde o barulho é cinco vezes maior – torna-se ensurdecedor viver. As portas do metrô abrindo e fechando, as buzinas, o trânsito, um carro de som, a própria raça humana vivendo provoca um barulho impressionante, que antes de ver o filme eu mal reparava.

Às 10 e meia meu irmão liga o rádio. Pouco antes, me adianto e fecho as portas que abafam a música que ele quer ouvir. Em O Som Ao Redor, uma interpretação que me veio é que, ao contrário do privado se tornar público, o que acontece é o privado ultrapassar o seu limite e chegar ao público sem permissão. Viver em uma cidade como São Paulo é perder o direito de privação sonora (não levarei nem em conta os acéfalos desmerecedores do ar que respiram que ligam o som alto em um transporte público ou em seu carro equipado para tal função). Mas é muito difícil você ter uma vida cem por cento privada, porque o som que você produz torna-se público e te entrega. Não que a humanidade tenha sido franciscana e isolada do som antes do modo de vida urbano, mas a viver em uma urbe te obriga a ser público até no som que você produz.

Essa é apenas uma (e talvez nem seja a principal) reflexão que O Som Ao Redor provoca. Recomendo esse filme a todos. É um dos retratos cinematográficos mais chocantes da “belíndia” em que vivemos nesse início de século. As grades, a esquina como o limite da sua realidade, o som que viola o seu habitat e todas as asperezas de uma grande cidade mostradas sutilmente na obra talvez deixem em cada espectador a angústia que deixou em mim. O mundo está cada vez mais barulhento. E nós, cada vez mais surdos.

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