O
primeiro longa-metragem de Kleber Mendonça Filho foi uma das últimas grandes
experiências que tive com a sétima arte. Saí do cinema estarrecido com dezenas
de pensamentos e angústias que o filme provoca. É uma obra-prima que
instantaneamente entrou no meu Top 5 do cinema nacional. Uma estranha e inédita
sensação de “claustrofobia social” me perpassou ao ver todos aqueles
personagens extremamente perdidos na realidade brasileira dessa “nova classe
média” em uma metrópole em crescimento que é Recife. Não tenho dúvida em dizer
que O Som Ao Redor mudou minha
perspectiva de como é viver em um ambiente urbano, sendo pertencente à nova
classe C.
Levanto
diariamente às 7 e meia da manhã. Durante uns quarenta minutos, eu “acordo”.
Após esse tempo, quando a minha mente finalmente está situada ao dia em questão,
me retiro a um ambiente tranquilo da minha casa para fazer as leituras que a
minha faculdade impõe. Mergulho durante três, quatro, cinco horas na
historiografia que trata os séculos XVII, XVIII e XIX, na Europa e nas
Américas. São textos acadêmicos, difíceis, em geral (infelizmente) não
acessíveis ao público que se encontra fora das universidades e que exigem absoluta
concentração, afinal, muito além de uma leitura, é um estudo.
Moro
no ponto alto de uma rua movimentada. Abaixo, quatro ruas menores e uma grande
avenida paralelas ao meu endereço. A janela do cômodo onde estudo dá uma
visão geral desse cenário. Pontualmente às 9 horas e 25 minutos, surge da
avenida lá embaixo um zunido insuportável, como se surgisse das profundezas do
inferno. Aos poucos o zunido toma forma e é possível reconhecer o que se trata.
É o caminhão de gás subindo da avenida para a rua de cima.
Demorei
alguns meses para compreender a letra da nova música do caminhão de gás. Como o
mais insuportável dos hits de verão, depois que descobri do que se tratava, ela
se impregnou em mim e agora é impossível não ouvir o som por perto e não
cantarolar se tem o lacre verde da BR
Petrobrás, pode confiar, é Liquigás. E durante a meia hora que o caminhão
de gás atravessa cada rua paralela e por fim a minha rua, é impossível se
concentrar e continuar qualquer leitura. Vou tomar um café, ver alguma matéria
no jornal matinal ou tweetar alguma coisa.
Desde
que assisti O Som Ao Redor (pra falar
a verdade, já um pouco antes, a sonoplastia de Um Alguém Apaixonado tinha me feito pensar a respeito) passei a
reparar mais em como nossa vida na cidade é barulhenta. E nas leituras matinais
em minha casa isso fica muito evidente. Um latido de um cachorro, um martelo, ou
uma marreta trabalhando furiosamente, o motor de um carro velho, o motor de um
carro novo, o freio do ônibus que para no ponto de ônibus em frente a minha
casa, as portas desse ônibus se abrindo, as mesas sendo postas no bar da
vizinhança, o sino do carrinho de Icegurt, a furadeira, o passarinho que
frequenta a árvore do quarteirão, até as vozes da rua e um zunido infinito do
todo que é a mistura de todos os sons. Seria o som da vida?
Quando
saio de casa e vou para o centro - onde o barulho é cinco vezes maior –
torna-se ensurdecedor viver. As portas do metrô abrindo e fechando, as buzinas,
o trânsito, um carro de som, a própria raça humana vivendo provoca um barulho
impressionante, que antes de ver o filme eu mal reparava.
Às
10 e meia meu irmão liga o rádio. Pouco antes, me adianto e fecho as portas que
abafam a música que ele quer ouvir. Em O
Som Ao Redor, uma interpretação que me veio é que, ao contrário do privado
se tornar público, o que acontece é o privado ultrapassar o seu limite e chegar
ao público sem permissão. Viver em uma cidade como São Paulo é perder o direito
de privação sonora (não levarei nem em conta os acéfalos desmerecedores do ar
que respiram que ligam o som alto em um transporte público ou em seu carro
equipado para tal função). Mas é muito difícil você ter uma vida cem por cento
privada, porque o som que você produz torna-se público e te entrega. Não que a
humanidade tenha sido franciscana e isolada do som antes do modo de vida
urbano, mas a viver em uma urbe te obriga a ser público até no som que você
produz.
Essa
é apenas uma (e talvez nem seja a principal) reflexão que O Som Ao Redor provoca. Recomendo esse filme a todos. É um dos
retratos cinematográficos mais chocantes da “belíndia” em que vivemos nesse
início de século. As grades, a esquina como o limite da sua realidade, o som
que viola o seu habitat e todas as asperezas de uma grande cidade mostradas
sutilmente na obra talvez deixem em cada espectador a angústia que deixou em
mim. O mundo está cada vez mais barulhento. E nós, cada vez mais surdos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário