Para Augusto Luis (1995-2013)
que nem tive tempo de
reencontrar…
Tempo. Quem diria que pra
reconhecer aquela que foi sua melhor amiga em algum dos anos que já
se passara ele precisaria forçar suas pálpebras e sua memória.
Sentada no ônibus aquela altura da noite, quando ele já não
encontrara um lugar disponível, ela ainda guardava algumas
semelhanças de outrora que o Tempo não ousou apagar. Dentre estas,
o sorriso que esboça ao percebê-lo dentro do ônibus.
Primeiro vem a simpatia. Beijos
no rosto e “me dá sua bolsa pra eu carregar”. Depois o
embaraçamento. A conversa retoma depois de quatro anos de que parte?
“Oi, quanto tempo!” “quais são as novidades?” “como vai a
vida?”. Até as duas partes que tão bem se conhecem se
reencontrarem, narram um improvisado resumo de sua vida que não
haviam programado contar. Finalmente o encontro. Atinados ao passado
longínquo se reconhecem sem a distância que os separaram e
conversam naturalmente como se jamais tivessem se afastado.
Os termos desta conversa não
pertencem ao presente, mas ao passado. Ele lembra uma causa, ela
retoma a consequência. Se lembram dos risos, das conversas, dos
gestos, gostos e cheiros. Recordam datas, fatos, festas e histórias.
Nomes e mais nomes. Dos amigos e dos desentendimentos. Riem. Que
besta eu fui; me arrependo de ter feito isso; que saudade daquilo,
daquele; era tão divertido naquele tempo; e passou.
Mas entendem que a árvore da
vida ramifica e cada um segue seu caminho. Ele não tem contato com
aqueles amigos em comum, mas ela os mantêm aproximados e
constantemente se veem. Sobra a ela a missão de contar as novidades.
Passado e presente a esta altura se misturam. Aquela menina teve um
filho; aquele cara tá rico; aqueles se casaram; três da nossa turma
seguiram firme no curso e fizeram carreira; aquele foi preso, mas
hoje tá na igreja; aquele morreu.
Oi? É isso mesmo. As vozes
mudam, ambas soam embargadas. A verdade ela não quer contar, nem ele
quer ouvir. A verdade, por mais dura que seja é que até aquele
ponto da conversa ele não se lembrava dele. Agora tudo vem a cabeça.
Ela conta como soube, tanto tempo depois, como foi horrível saber;
saber através do irmão dele ainda por cima.
Ele recorda. Eram cinco. Eles que
estão agora no ônibus, ele que não podia, mas agora já não se
encontra mais nesta dimensão, seu irmão e mais ainda uma última
amiga. Voltavam sempre juntos, ora os cinco lado a lado, ora em
triozinho, ora em parzinho, mas sempre se acompanhavam. Como ele
pudera esquecer daqueles quatro? Durou apenas oito meses, ou um tanto
mais, mas não era para ter sido assim tão esquecível.
Morreu faz um ano. Cada novidade
era uma punhalada para ele. Ela soube depois de três meses. Soube da
mesma forma que ele está sabendo agora: de um encontro ocasional,
mas com o irmão dele. Tinha apenas 18 anos. Tinham quase a mesma
idade. A causa, meningite alérgica. Sórdida realidade da periferia
que traz à boca um infeliz ‘felizmente não foi de droga ou bala
perdida’. Não existe um felizmente.
O ônibus chegou ao destino final
e eles se despedem com a promessa contida no abraço de que eles vão
se manter em contato. Agora ele está a sós. A ausência daquele não
sai da mente e não vai sair dali para frente. Na caminhada para sua
casa a mente voa. O que dói é que ele já estava ausente e nem
notara. E que continuaria ausente de sua vida, mesmo que presente
neste mundo, já que, imbecil que era, dificilmente se lembraria
daqueles dias e correria atrás de quem já não via. Agora se
lembra. Um ano mais novo, uma série a menos. Frequentavam a mesma
escola, mas se conheceram no curso que coincidentemente faziam
juntos. Dele conheceu seu irmão, e as duas amigas que acompanhariam
nos retornos vespertinos. Emprestou um livro obrigatório para ele,
quando ele não podia pagar por um novo. Em compensação, ele
livrara sua pele quando foi ameaçado por um moleque da outra rua.
Ele, mais moleque que este oferecera socorro quando precisasse.
Naquela época pouco tinham em comum, mas isso não importava a
nenhum deles. À época da inocência, não é necessário apreciar a
mesma cerveja, ou votar no mesmo candidato para firmarem uma amizade.
Mas crescemos e conhecemos novas gentes, novos horizontes e
cruelmente apagamos da memória aqueles que, mesmo que marcaram
fortemente um período, deixaram de marcar. Não brigaram, não se
desentenderam, apenas se afastaram. E de afastar se esqueceu. E de
esquecer lamenta.
Abre a rede social e vai atrás.
Procura ela. Dela procura o irmão dele. De seu irmão o encontra.
Olha as fotos. A realidade é injusta. Tinha sua idade, um ano a
menos, pouco importa, um menino. Aparece sempre sorrindo, seja à
beira da piscina ou na igreja com sua família. Não parece adoecido.
Descobre que deixara este mundo há malditos um ano e dois meses.
Suspira e segue em frente. Não aguenta ver as mensagens dos amigos
não lidas nem respondidas.
Dele procura outros amigos.
Recorda-se e reconhece. Imediatamente adiciona. Adiciona o irmão
dele, a quinta amiga, o ex dela, uns conhecidos que não se lembrava,
uns colegas esquecidos, uns amigos. Este mergulho no passado, que já
não está mais completo, mesmo sem saber mexe com sua percepção de
vida. Em seguida vai atrás de amigos de outros lugares e sai
adicionando um por um que reconhece. Naquela noite foram dezenas de
solicitações de amizade realizadas.
Quando voltou para sua casa no
dia seguinte remexeu nas gavetas mais empoeiradas de seu quarto.
Encontrou a caixa com cadernos e agendas, desde o remoto início do
ensino fundamental até o final do ensino médio que preferira
guardar sem saber o porquê. Folheando-as encontrou nomes e números
de telefone, raramente endereços, com a tinta da caneta enfraquecida
pelo Tempo. Planilhou no computador cada número que conseguiu
recuperar, atualizando vez por outra os dígitos que foram alterados
pelas mudanças da agência nacional de telefonia. Nos dias seguintes
ligou para cada um deles. Trabalho em geral perdido, pois a maioria
ou encontrava-se fora de serviço, ou já não pertencia ao mesmo
dono. Os nove acertos que obteve foram suficientes.
A mesma trajetória. Antes da
simpatia, a estranhice. Quem é?; oxe; por quê?; desculpa, não
lembro. Depois a simpatia, o embaraçamento e finalmente o
reencontro. Ou o desencontro. Dos nove, quatro não conseguiu
prosseguir diálogo. Talvez medo, talvez desprezo, repulsa, vá
saber. Paciência.
Volta para a rede social. As
notificações somam-se às dezenas para sua felicidade. As
solicitações foram atendidas, muitas vezes com mensagens de
agradecimento ou alegria em reconhecer. Seria seu próximo passo.
Abriria a caixa de mensagem e iniciaria uma conversa com cada um que
conseguisse.
E assim o faz pelos próximos
dias e semanas, para total estranhamento e depois alegria ou cansaço
de seus amigos virtuais. Sentia necessidade de se aproximar de todos
os amigos, colegas e conhecidos que já fizera na vida e cada dia que
passava ficava mais obcecado por essa aproximação. Queria correr contra o tempo. Seu maior medo seria perder mais um amigo antes que o reencontrasse.
Não só de inbox vivera dali em
diante. Ligou para todos os números registrados em seu celular e
para os números recuperados do antigo aparelho que gastou sessenta
reais só para fazer um backup, sem a certeza de que funcionaria. Em
dois meses conseguiu falar com mais de seiscentas pessoas, seja por
telefone, por mensagem, ou e-mail. O período coincidiu com um
feriado emendado de quatro dias, em que aproveitou para ir à cidade
de sua família no interior visitar todos seus parentes e, pelo
menos, tentar visitar os amigos que um dia brincara, ainda que com os
naturais insucessos que as mudanças de residência provocam.
Não se contentou em apenas
conversar uma vez com pessoas que há anos não via. Diariamente
retomava a conversava interrompida no dia anterior com uma dúzia,
revendo o tempo perdido e sempre lamentando porque havia sido apenas
colega quando poderia ter sido amigo íntimo. Mais de dez vezes
passou por conversas tensas, buscando sempre limpar os panos sujados
em momentos que hoje nem bem se lembra se fora culpa sua ou não, mas
que em suma maioria, a iniciativa de pedir desculpas partiu de si.
Foram apenas dois casos que o perdão não veio. Lamentou, mas não
pode prosseguir com estas. Nas demais, a reação foi, em geral, de
sofreguidão cômica, ‘nossa como eu fui idiota’.
Não importava o gosto musical, a
opinião política, a profissão ou o senso de humor. Dizia a si
mesmo que aquilo podia representar apenas uma pequena parcela do que
era o ser humano. Via a todos que se reaproximava com a maior bondade
que já sentira, isento, talvez pela primeira vez na vida, de
julgamentos premeditados e de amizade seletiva. Queria estar próximo
a todos e descobriu que muitos deles, apesar das diferenças fazia
enorme importância em sua vida. E marcava de se encontrar todo dia,
depois do trabalho, ou a qualquer período do fim de semana. Com o
tempo, dos seiscentos contatos viu mais de dois terços
presencialmente.
A partir do quarto mês conseguiu
a proeza de juntar quem frequentou suas turmas escolares em encontros
de rememoração. Em cada momento que percebera o que fizera,
afastava-se no salão, ou parque em que o evento ocorria e de longe
apenas observava abraços e conversas, eventualmente lágrimas
enquanto se lembrava dele. Sempre ele. Quem dera ter tido essa ideia
antes. O mais emocionante para si foi o reencontro dos quatro amigos
de curso. Encontraram-se no lugar que antes estudavam e
felicitaram-se em perceber que ficavam felizes à presença dos
outros. Elas, o irmão dele e ele voltaram para casa naquela tarde
abraçados, como nos velhos tempos, simultaneamente contentes e
comovidos.
Completados seis meses de sua
obsessão começou a sair com uma garota que estudara junto na
segunda série. Era uma dessas conhecidas, nem colegas nem amigas,
que mantinha adicionado pelas amizades em comum, mas jamais se
conversaram anteriormente. Descobriram-se um ao outro, ele a achou
inacreditavelmente linda e romântica e inegavelmente ela se quedou
frente a importância que ele dava às pessoas que conhecia. Certa
vez, ele comentara com ela que não precisava conhecer nenhuma pessoa
a mais, bastava reconhecer a todos que já cruzara em sua vida. A
união dos dois era a prova disso.
No dia em que completara dois
anos da morte daquele que despertara este espírito nele, o casal
visitou o cemitério do bairro. Frente ao túmulo, encontraram o
irmão e sua noiva. Era a terceira vez que se reencontravam nesses
meses e agora, o abraço que deram possuía tanta ternura que era
mais do que uma celebração à ausência do amado amigo e irmão,
mas uma saudação à vida e à importância dos que aqui estão.
Ficaram os quatro juntos pelo resto da tarde até se despedirem.
Passadas duas semanas, quando ele
voltava de um encontro com uma amiga culta do ensino médio, próximo
das onze e meia da noite, a caminho de casa por uma rua movimentada,
um carro em alta velocidade fugindo da polícia perdeu a direção e
prensou seu corpo contra um muro de concreto, matando-o na hora.
Jamais saberá o ladrão sobrevivente que aquele que acabara de
culposamente assassinar frequentara a mesma segunda série que ele e
tentara entrar em contato alguns meses antes, mas sem sucesso, devido
a alteração do endereço e, consequentemente dos números de
telefone.
Em seu funeral assistiu-se uma
reunião de centenas de jovens, como já não era comum naquele tempo
e um clima de comoção como há muito não era visto.
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