10 de agosto de 2015

A maior importância

Para Augusto Luis (1995-2013)
que nem tive tempo de reencontrar…

Tempo. Quem diria que pra reconhecer aquela que foi sua melhor amiga em algum dos anos que já se passara ele precisaria forçar suas pálpebras e sua memória. Sentada no ônibus aquela altura da noite, quando ele já não encontrara um lugar disponível, ela ainda guardava algumas semelhanças de outrora que o Tempo não ousou apagar. Dentre estas, o sorriso que esboça ao percebê-lo dentro do ônibus.
Primeiro vem a simpatia. Beijos no rosto e “me dá sua bolsa pra eu carregar”. Depois o embaraçamento. A conversa retoma depois de quatro anos de que parte? “Oi, quanto tempo!” “quais são as novidades?” “como vai a vida?”. Até as duas partes que tão bem se conhecem se reencontrarem, narram um improvisado resumo de sua vida que não haviam programado contar. Finalmente o encontro. Atinados ao passado longínquo se reconhecem sem a distância que os separaram e conversam naturalmente como se jamais tivessem se afastado.
Os termos desta conversa não pertencem ao presente, mas ao passado. Ele lembra uma causa, ela retoma a consequência. Se lembram dos risos, das conversas, dos gestos, gostos e cheiros. Recordam datas, fatos, festas e histórias. Nomes e mais nomes. Dos amigos e dos desentendimentos. Riem. Que besta eu fui; me arrependo de ter feito isso; que saudade daquilo, daquele; era tão divertido naquele tempo; e passou.
Mas entendem que a árvore da vida ramifica e cada um segue seu caminho. Ele não tem contato com aqueles amigos em comum, mas ela os mantêm aproximados e constantemente se veem. Sobra a ela a missão de contar as novidades. Passado e presente a esta altura se misturam. Aquela menina teve um filho; aquele cara tá rico; aqueles se casaram; três da nossa turma seguiram firme no curso e fizeram carreira; aquele foi preso, mas hoje tá na igreja; aquele morreu.
Oi? É isso mesmo. As vozes mudam, ambas soam embargadas. A verdade ela não quer contar, nem ele quer ouvir. A verdade, por mais dura que seja é que até aquele ponto da conversa ele não se lembrava dele. Agora tudo vem a cabeça. Ela conta como soube, tanto tempo depois, como foi horrível saber; saber através do irmão dele ainda por cima.
Ele recorda. Eram cinco. Eles que estão agora no ônibus, ele que não podia, mas agora já não se encontra mais nesta dimensão, seu irmão e mais ainda uma última amiga. Voltavam sempre juntos, ora os cinco lado a lado, ora em triozinho, ora em parzinho, mas sempre se acompanhavam. Como ele pudera esquecer daqueles quatro? Durou apenas oito meses, ou um tanto mais, mas não era para ter sido assim tão esquecível.
Morreu faz um ano. Cada novidade era uma punhalada para ele. Ela soube depois de três meses. Soube da mesma forma que ele está sabendo agora: de um encontro ocasional, mas com o irmão dele. Tinha apenas 18 anos. Tinham quase a mesma idade. A causa, meningite alérgica. Sórdida realidade da periferia que traz à boca um infeliz ‘felizmente não foi de droga ou bala perdida’. Não existe um felizmente.
O ônibus chegou ao destino final e eles se despedem com a promessa contida no abraço de que eles vão se manter em contato. Agora ele está a sós. A ausência daquele não sai da mente e não vai sair dali para frente. Na caminhada para sua casa a mente voa. O que dói é que ele já estava ausente e nem notara. E que continuaria ausente de sua vida, mesmo que presente neste mundo, já que, imbecil que era, dificilmente se lembraria daqueles dias e correria atrás de quem já não via. Agora se lembra. Um ano mais novo, uma série a menos. Frequentavam a mesma escola, mas se conheceram no curso que coincidentemente faziam juntos. Dele conheceu seu irmão, e as duas amigas que acompanhariam nos retornos vespertinos. Emprestou um livro obrigatório para ele, quando ele não podia pagar por um novo. Em compensação, ele livrara sua pele quando foi ameaçado por um moleque da outra rua. Ele, mais moleque que este oferecera socorro quando precisasse. Naquela época pouco tinham em comum, mas isso não importava a nenhum deles. À época da inocência, não é necessário apreciar a mesma cerveja, ou votar no mesmo candidato para firmarem uma amizade. Mas crescemos e conhecemos novas gentes, novos horizontes e cruelmente apagamos da memória aqueles que, mesmo que marcaram fortemente um período, deixaram de marcar. Não brigaram, não se desentenderam, apenas se afastaram. E de afastar se esqueceu. E de esquecer lamenta.
Abre a rede social e vai atrás. Procura ela. Dela procura o irmão dele. De seu irmão o encontra. Olha as fotos. A realidade é injusta. Tinha sua idade, um ano a menos, pouco importa, um menino. Aparece sempre sorrindo, seja à beira da piscina ou na igreja com sua família. Não parece adoecido. Descobre que deixara este mundo há malditos um ano e dois meses. Suspira e segue em frente. Não aguenta ver as mensagens dos amigos não lidas nem respondidas.
Dele procura outros amigos. Recorda-se e reconhece. Imediatamente adiciona. Adiciona o irmão dele, a quinta amiga, o ex dela, uns conhecidos que não se lembrava, uns colegas esquecidos, uns amigos. Este mergulho no passado, que já não está mais completo, mesmo sem saber mexe com sua percepção de vida. Em seguida vai atrás de amigos de outros lugares e sai adicionando um por um que reconhece. Naquela noite foram dezenas de solicitações de amizade realizadas.
Quando voltou para sua casa no dia seguinte remexeu nas gavetas mais empoeiradas de seu quarto. Encontrou a caixa com cadernos e agendas, desde o remoto início do ensino fundamental até o final do ensino médio que preferira guardar sem saber o porquê. Folheando-as encontrou nomes e números de telefone, raramente endereços, com a tinta da caneta enfraquecida pelo Tempo. Planilhou no computador cada número que conseguiu recuperar, atualizando vez por outra os dígitos que foram alterados pelas mudanças da agência nacional de telefonia. Nos dias seguintes ligou para cada um deles. Trabalho em geral perdido, pois a maioria ou encontrava-se fora de serviço, ou já não pertencia ao mesmo dono. Os nove acertos que obteve foram suficientes.
A mesma trajetória. Antes da simpatia, a estranhice. Quem é?; oxe; por quê?; desculpa, não lembro. Depois a simpatia, o embaraçamento e finalmente o reencontro. Ou o desencontro. Dos nove, quatro não conseguiu prosseguir diálogo. Talvez medo, talvez desprezo, repulsa, vá saber. Paciência.
Volta para a rede social. As notificações somam-se às dezenas para sua felicidade. As solicitações foram atendidas, muitas vezes com mensagens de agradecimento ou alegria em reconhecer. Seria seu próximo passo. Abriria a caixa de mensagem e iniciaria uma conversa com cada um que conseguisse.
E assim o faz pelos próximos dias e semanas, para total estranhamento e depois alegria ou cansaço de seus amigos virtuais. Sentia necessidade de se aproximar de todos os amigos, colegas e conhecidos que já fizera na vida e cada dia que passava ficava mais obcecado por essa aproximação. Queria correr contra o tempo. Seu maior medo seria perder mais um amigo antes que o reencontrasse.
Não só de inbox vivera dali em diante. Ligou para todos os números registrados em seu celular e para os números recuperados do antigo aparelho que gastou sessenta reais só para fazer um backup, sem a certeza de que funcionaria. Em dois meses conseguiu falar com mais de seiscentas pessoas, seja por telefone, por mensagem, ou e-mail. O período coincidiu com um feriado emendado de quatro dias, em que aproveitou para ir à cidade de sua família no interior visitar todos seus parentes e, pelo menos, tentar visitar os amigos que um dia brincara, ainda que com os naturais insucessos que as mudanças de residência provocam.
Não se contentou em apenas conversar uma vez com pessoas que há anos não via. Diariamente retomava a conversava interrompida no dia anterior com uma dúzia, revendo o tempo perdido e sempre lamentando porque havia sido apenas colega quando poderia ter sido amigo íntimo. Mais de dez vezes passou por conversas tensas, buscando sempre limpar os panos sujados em momentos que hoje nem bem se lembra se fora culpa sua ou não, mas que em suma maioria, a iniciativa de pedir desculpas partiu de si. Foram apenas dois casos que o perdão não veio. Lamentou, mas não pode prosseguir com estas. Nas demais, a reação foi, em geral, de sofreguidão cômica, ‘nossa como eu fui idiota’.
Não importava o gosto musical, a opinião política, a profissão ou o senso de humor. Dizia a si mesmo que aquilo podia representar apenas uma pequena parcela do que era o ser humano. Via a todos que se reaproximava com a maior bondade que já sentira, isento, talvez pela primeira vez na vida, de julgamentos premeditados e de amizade seletiva. Queria estar próximo a todos e descobriu que muitos deles, apesar das diferenças fazia enorme importância em sua vida. E marcava de se encontrar todo dia, depois do trabalho, ou a qualquer período do fim de semana. Com o tempo, dos seiscentos contatos viu mais de dois terços presencialmente.
A partir do quarto mês conseguiu a proeza de juntar quem frequentou suas turmas escolares em encontros de rememoração. Em cada momento que percebera o que fizera, afastava-se no salão, ou parque em que o evento ocorria e de longe apenas observava abraços e conversas, eventualmente lágrimas enquanto se lembrava dele. Sempre ele. Quem dera ter tido essa ideia antes. O mais emocionante para si foi o reencontro dos quatro amigos de curso. Encontraram-se no lugar que antes estudavam e felicitaram-se em perceber que ficavam felizes à presença dos outros. Elas, o irmão dele e ele voltaram para casa naquela tarde abraçados, como nos velhos tempos, simultaneamente contentes e comovidos.
Completados seis meses de sua obsessão começou a sair com uma garota que estudara junto na segunda série. Era uma dessas conhecidas, nem colegas nem amigas, que mantinha adicionado pelas amizades em comum, mas jamais se conversaram anteriormente. Descobriram-se um ao outro, ele a achou inacreditavelmente linda e romântica e inegavelmente ela se quedou frente a importância que ele dava às pessoas que conhecia. Certa vez, ele comentara com ela que não precisava conhecer nenhuma pessoa a mais, bastava reconhecer a todos que já cruzara em sua vida. A união dos dois era a prova disso.
No dia em que completara dois anos da morte daquele que despertara este espírito nele, o casal visitou o cemitério do bairro. Frente ao túmulo, encontraram o irmão e sua noiva. Era a terceira vez que se reencontravam nesses meses e agora, o abraço que deram possuía tanta ternura que era mais do que uma celebração à ausência do amado amigo e irmão, mas uma saudação à vida e à importância dos que aqui estão. Ficaram os quatro juntos pelo resto da tarde até se despedirem.
Passadas duas semanas, quando ele voltava de um encontro com uma amiga culta do ensino médio, próximo das onze e meia da noite, a caminho de casa por uma rua movimentada, um carro em alta velocidade fugindo da polícia perdeu a direção e prensou seu corpo contra um muro de concreto, matando-o na hora. Jamais saberá o ladrão sobrevivente que aquele que acabara de culposamente assassinar frequentara a mesma segunda série que ele e tentara entrar em contato alguns meses antes, mas sem sucesso, devido a alteração do endereço e, consequentemente dos números de telefone.
Em seu funeral assistiu-se uma reunião de centenas de jovens, como já não era comum naquele tempo e um clima de comoção como há muito não era visto.

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