14 de junho de 2013

Democracia em frangalhos

Hoje é dia 14 de junho de 2013. Amanhã começa a Copa das Confederações, micro-torneio que funciona como preparativo do macro-torneio que será realizado exatamente daqui a um ano, a Copa do Mundo de Futebol. Tanto um como outro serão realizados no Brasil. O clima no Brasil, vulgo país do futebol e terra da alegria não está como outrem quisera que estivesse. E se a programação da TV, incluindo o jornalismo ou a publicidade de cerveja mostra um país em festa, essa imagem está distorcida. Fora o fato iminente de que essa Copa não é dos brasileiros, os brasileiros estão realmente precisando de outros tipos de evento popular. O slogan do refrigerante yanque de “vamos colorir o Brasil” pode, deve  tomar proporções que nenhum poderoso gostaria que tomasse. Pois divago, vamos colorir o Brasil! Não do jeito que querem, que propuseram. Vamos unir-nos ao grito ecoado na Rua da Consolação no dia 13 de Junho, “ô... o povo acordou!” e brandar. Cobrar a revogação de vinte centavos é uma cobrança simbólica para tanto que temos que cobrar. Devemos fazê-la, até o fim. E devemos, também, a partir dela, cobrar as insatisfações gerais que temos a cada dia. Vinte e cinco anos após a assinatura da Constituição, todos os nossos direitos conquistados, por meio da luta dos nossos antepassados estão sendo ignorados, jogados no limbo por quem quer colorir o Brasil do jeito que o povo não quer. Está na hora da democracia entrar em pleno vigor, e não haveria melhor momento do que nas vésperas do evento mais adorado pelos brasileiros. Pois bem, o Brasil que queremos não depende do grito da torcida; depende do grito do eleitorado, dos cidadãos. E haverá melhor momento do que agora? Sinta que o ar está diferente. E vai muito além do cheiro do gás-pimenta tacado pela polícia ou do vinagre usado para proteção pessoal dos manifestantes – que agora o porte deste está presente no novo artigo do Código Penal Paulista que permite enquadramento em seja lá em que acusação. Querem acabar com os nossos direitos. O único jeito, é ir pra rua. Vem também!

Muita coisa – verdadeira e falsa – já foi escrita sobre o que aconteceu nos últimos protestos em São Paulo. Não quero escrever tanto, mas quero contribuir. A seguir vou relatar algumas coisas que vi e vivi nos protestos dos dias 11 e 13 de junho, sob a ótica dos elementos inóspitos que me chamaram a atenção e me permitem pensar qual seria a receita para a democracia em vigor no Brasil, em São Paulo hoje. Democracia essa, que está em frangalhos.

RECEITA DE DEMOCRACIA

Pimenta

Coloquemos assim: a “ordem” é um imenso milharal. Pessoas que se utilizam do 220º artigo da Constituição que permite a liberdade de expressão – “sob qualquer forma, processo ou veículo” – são pré-julgados como pragas, independente do nível de destruição a que se propuseram; independente até mesmo se existe destruição ou não. Policiais, são os capangas dos fazendeiros pagos para evitar que a praga tome proporções limítrofes, ou até mesmo, que a praga exista. O gás pimenta, ou gás lacrimogêneo, é o veneno usado contra a infestação da suposta praga. A única coisa que interessa é manter o milharal intacto para o bom uso de seus proprietários.

Nos últimos dias tive as primeiras experiências com o gás lacrimogêneo. Em todas as vezes, o produto foi atirado sem que houvesse a menor necessidade. Ao contrário do que se disse na mídia, o gás não foi resposta à violência do movimento. O gás foi a violência. O vandalismo da minoria dos manifestantes veio após o vandalismo da polícia. Ora, atirar um gás que te deixa extremamente vulnerável, com a respiração insuportável e os olhos ardendo, sem que tivesse feito nada, apenas para liberar a via – e ainda dizem por aí que a vez é do pedestre – é vandalismo ou não é?

Vinagre

A química, ciência tão interessante, quanto, para mim, incompreensível. O ingrediente mais significativo dessa salada democrática é o vinagre. O mesmo que queima é o escudo contra a bomba que queima muito mais. No dia 6 de junho aprendi a imensa importância de carregar sempre uma garrafa de vinagre. E em meio às bombas, o que seria de nós sem ele?

Não obstante, o escudo é tratado pelos capangas do Estado como a arma. Ontem, no dia 13, eu carregava um litro de vinagre na bolsa quando me direcionava ao centro. Após receber mensagens amigas, que em qualquer contexto seria taxada como surreal, de que a polícia estava revistando mochilas e prendendo quem estivesse portando vinagre, desfiz do meu. Espero que tenha sido aproveitado por algum percebido que na Estação penha do Metrô encontrou a garrafa e viu que estava lacrada.

Na Rua Pedro Taques, a demonstração mais legal da população até agora veio a tona. Quando direcionávamos para a Rua da Consolação, moradores dos prédios da pequena rua aplaudiram-nos e atenderam nosso pedido de jogar vinagre. Em resposta, aplausos dos manifestantes e até mesmo flores para quem estava nas janelas mais baixas. Minutos depois, já na Consolação, ocorreu a ação policial mais covarde. Encurralaram em um quarteirão, entre as ruas Pedro Taques e Fernando Albuquerque. De um lado os muros do Cemitério, de outro, prédios. Na retaguarda, cavalaria. No front, Tropa de Choque. Mesmo sob os gritos dos manifestantes “sem violência! Sem violência”, juntos, dos dois lados, jogaram bombas de gás lacrimogêneo não possibilitando qualquer rota de fuga e fornecendo 5 minutos – que durou a eternidade – de horror. Mal sabia aqueles moradores da Rua Pedro Taques que aqueles vinagres, puderam não ter salvado vidas. Mas ao mínimo, evitou muita gente de parar no hospital. Os moradores da Rua São Carlos do Pinhal têm muito que aprender com os da Rua Pedro Taques.

Tomate

Após a dispersão do protesto do dia 11, na Rua São Carlos do Pinhal, paralela à Avenida Paulista, acompanhei cenas que jamais imaginaria. A rua tomada por revoltosos. Absolutamente justificáveis, no caso. Fomos brutalmente impedidos de seguir a manifestação minutos antes. Só então, acuados, é permitido dizer que é natural, da parte de alguns, quebrarem lixeiras, espalharem lixo pela rua e incendiá-los. O lixo é bem público? Interromper o trânsito em uma rua sem trânsito, onde se encontra as moradias mais caras de São Paulo é interromper o direito de ir e vir de quem? De quem tem helicóptero. Aqueles minutos foi uma demonstração do mundo real, do mundo de quem vive na periferia – inclusive quem aqui escreve –, de quem sofre diariamente para quem vive ilhado no conforto, quem nunca pegou um ônibus às 6 horas da manhã e tem muito mais dinheiro do que quem um aumento de 20 centavos na tarifa do transporte faz toda a diferença.

Acompanhei tudo de perto, mas não participei do vandalismo. Contribuí apenas com minha voz – e meu espírito, talvez. Foi então que, na esquina da Rua São Carlos do Pinhal com a Alameda campinas um gigantesco tomate caiu vinte centímetros a minha frente. Olhei para o alto e vi as inúmeras famílias nos observando e especificamente uma donzela, aparentemente do sexto, ou sétimo andar arremessando os tomates; ela já estava há alguns minutos xingando com insultos que iam desde “comunistas” e “filhos da puta” até “vagabundos” e “vândalos”. Nenhuma bomba de gás lacrimogêneo nem a cacetada que levei de um policial, alguns minutos depois me feriram tanto como aquele tomate que não me atingiu. Aquele tomate que há dois meses estava custando mais do que um trabalhador que não tem R$ 3,20 para ser obrigado a andar de ônibus pode pagar, que tanta gente não tem para comer, uma donzela da classe A jogou em quem estava sujando sua ruazinha que deve ficar intacta de “gente diferenciada”. Depois daquela esquina quebraram carros e incendiaram uma guarita policial. Uma pena que aquela mulher estava muito distante do que conseguiríamos alcançar...

Modo de preparo

Logo após o tumulto na Rua São Carlos do Pinhal houve uma grande dispersão dos manifestantes deixou-nos vulneráveis. A qualquer som de sirene, a melhor alternativa é correr. Por ora, descobri, da pior maneira possível, que a Rua Almirante Marques de Leão não tem nenhuma travessa entre os números 1000 e 500. As cerca de 30 pessoas que, desarmadas corriam junto comigo pela rua, foram esporadicamente pegas pelas 10 ou 15 motos da polícia que logo chegaram. Ali, naquela rua escura, longe, muito longe do movimento da reprimida Avenida Paulista, eles aproveitaram da situação. Pararam o grupo em que eu estava. Tiraram seus cassetetes. Gritaram “corre agora, seu filho da puta!” batendo com o cassetete. Antes que me atingissem, como atingiram dois amigos, corri. Após uns duzentos metros sem travessa ou local para me esconder, diminuí o passo; instantaneamente apareceu uma moto ao meu lado. O soldado desceu da moto e desceu o cassetete em meu braço esquerdo, que ainda dói. Vociferou as mesmas palavras: “Corre agora, seu filho da puta! Corre!” Dei sorte, apenas uma golpeada. Pelo que vi, outros foram violentamente castigados. Desapareci na primeira travessa da rua infinita e me escondi atrás da mureta onde mais cinco manifestantes se escondiam. Todos – três homens e duas mulheres – foram agredidos. As motos sumiram de vista e pudemos, ao menos, respirar.

Não sei se todos chegaram que levaram as cacetadas chegaram a vandalizar a Rua São Carlos do Pinhal. No meu caso e no caso dos meus amigos ali presentes, não. Apenas o gosto da polícia de bater com cassetete, independente do que quem fez ou não qualquer coisa que foi visível. E numa rua deserta, àquela hora, escura e longe de qualquer testemunha. Em uma dessas ruas que foi espancado o jornalista da Folha Pedro Ribeiro Nogueira, logo antes de ser preso. É muito de praxe recitar Chico Buarque? Não lembro nada que contextualize melhor o que eu vivi na Rua Almirante Marques de Leão. “Como é difícil acordar calado/ se na calada da noite eu me dano”.





RÁPIDAS REFLEXÕES

  • Nunca vi tanta polícia na rua como no dia 13 de Junho de 2013. Nem em 2006 quando ocorreu a onde de violência vinda do Primeiro Comando da Capital (PCC) nem em 2012 quando mais de 400 pessoas morreram nas  madrugadas da periferia, em frente a bares onde atiradores passaram de carro tirando vidas. Aliás, que fim deu essa história mesmo?
  • É incrível ver uma matéria na TV logo após acessar as redes sociais. Finalmente existe um meio de comunicação que bate de frente com a velha Mídia. Conte quantos repórteres da TV você viu de dentro da manifestação. Todos atrás da tropa. Diferente das matérias que têm sido publicadas na internet. Além de que, onde mais um blogueiro que mora a 35 quilômetros do centro, estuda em uma Universidade abandonada pelo poder público que ano passado ficou 5 meses de greve e que pega ônibus diariamente nas piores condições possíveis teria espaço para reclamar além daqui?
  • Amanhã começa a Copa das Confederações. Aproveitemos o pseudo-espírito nacionalista e a atenção mundial sobre o país do futebol para não pararmos de gritar. Vamos às ruas. Como qualquer um pode perceber não é por 20 centavos. É a nossa democracia que está em jogo.
  • Demorei muito, muito mesmo e fui vítima da minha própria teimosia. Mas agora, finalmente joguei no lixo meu broche da estrela do PT.

Um comentário:

  1. Parabéns, Dylan, por esse relato excepcional. Espero que mais janelas possam ser abertas, para que outro vejam o grande muro pintado que dizem ser o nosso "glorioso".

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