11 de maio de 2014

Amaccord


Faz cinco anos que entrei no Ensino Médio. Quando entrei no Ensino Médio fazia cinco anos que entrara na quarta série do Ensino Fundamental. Na época, a quarta série parecia estar a décadas de distância. No entanto hoje, parece que ingressei no o Ensino Médio anteontem. No mais, é igualmente estranho pensar que já faz 10 anos que cursei a quarta série. Não parece que foi semana passada, mas a distância de uma década é assustadora.
Tudo mudou com as torres gêmeas. Antes de 2011 tudo que “já faz 10 anos” estava lá no passado distante de dez anos atrás, quase apagado, alojado no hipotálamo em preto e branco ou sépia. Mas em setembro de 2011 vi pela primeira vez uma imagem de uma década distanciada em tecnicolor, ainda presente em meu córtex. A tórrida terça-feira em que o episódio de Dragon Ball foi interrompido para no lugar aparecer as torres pegando fogo não parecia um episódio da semana passada, mas tampouco aparentava ser de “dez anos atrás”.
Desde então tudo vem completando uma década com uma velocidade aterradora: o vice do São Caetano na Libertadores, o penta, a eleição do Lula, o caso Von Richthofen, o Nemo, os 450 anos de São Paulo... Chega a ser assustador. Mais assustador ainda quando eu olho para o calendário e vejo em que anos estamos.
Fucking God. Amanhã completo 20 anos. 20 anos. Duas décadas. Cinco mandatos presidenciais. 20 anos. Faz 10 anos que eu tinha 10 anos. Parecia tão distante naquela época completar 20 anos. Hoje eu vejo que amanhã completarei 30 depois de amanhã 40 anos. Caramba, 20 anos! Se eu viver 80 anos, um quarto de vida já passou. Mas não vou chegar lá. Meu costume de andar entre carros e atravessar fora da faixa tende a me levar antes.
Olho para trás nesse crepúsculo dos 19 anos e tento fazer meu Amaccord. Parece que não vale a pena. Parece que passei um terço da vida dormindo e no segundo terço estive dentro do transporte público. Considerando o fato de que provavelmente eu estive dormindo dentro desses ônibus. Do terço que resta valeu a pena?
Vou entrar na terceira década da minha vida. Quando em sã consciência imaginei uma coisa dessas? Já se passaram duas décadas. Passei toda a adolescência esperando me tornar adolescente. Já foi, perdi o fluxo e não me toquei. O fato de chegar aos 20 sem nunca ter contraído herpes é o símbolo do meu fracasso sexual na adolescidade?
Pensemos positivamente, não foi um tempo perdido afinal. Em vinte anos já li Crime e Castigo. Mas oras, de que adianta ter lido Dostoievski em minha adolescência e ter perdido o fluxo? Também fui a um show do Paul McCartney. Ok, divago, não tem nada de incrível para contar nesses 20 anos...
Desses 20 anos parece que só aproveitei os cinco últimos. E desses cinco anos parece que só aproveitei de verdade os últimos cinco meses. É, nos últimos cinco meses gravei um disco. Sou um baixista de uma banda genial. Mas não toquei no álbum, devido minha incapacidade enquanto baixista. Sou uma fraude, senhores. Não pensem que as melhores tiradas desse texto saíram da minha cabeça...
O que importa é que gravamos um disco. Minha banda é ouvida até na Rússia. Olho pra trás e tomo outro susto. Já faz 8 anos que estou metido nessa carreira musical. E dentre as orquestras que passei quando tocava violino e a banda que estou tocando baixo nunca, em milésimo de momento algum senti aquilo que os poetas dizem que sentem ao tocar um instrumento musical. Ou era mentira ou sou eu que estou mentindo a mim mesmo há oito anos. É tão melhor escrever...
Lembro-me daquela tarde de domingo em que eu assistia a TV Cultura. O documentário (raios, que criança de cinco anos assiste esse tipo de documentário num domingo?) era sobre a formação geológica da América Central. Fiquei tão encantado com a história das ilhas à deriva no oceano que um dia tentaram passar todas ao mesmo tempo entre a América do Norte e do Sul e entalaram unindo assim os dois continentes em um só que, quando acabou corri para minha mãe contando o caso e perguntando se aquilo era matéria de história ou de geografia. Minha mãe respondeu que era história e eu, antes de entrar no presinho enfiei em minha cabeça que história era minha matéria predileta. Mesmo sabendo anos depois que aquilo não tinha nada a ver com história, eu não tirei a ideia da minha cabeça e, interessantemente, geologia nunca me chamou a atenção. A ideia das ilhas à deriva eram mais interessantes que as placas tectônicas.
Hoje já faz dois anos e meio que estou estudando história em uma universidade. Os encantos continuam surgindo, a cada texto, a cada aula. A vontade de lecionar é que morre a cada instante.
Lembro-me das duas eleições para o grêmio escolar que perdi. Lembro também do filme que era para eu ter dirigido, mas desisti no meio prejudicando o resto do grupo. Em algum momento desses processos me deu uma preguiça tamanha de liderança que nunca mais sumiu e, provavelmente jamais reaparecerá. Preguiça de liderança e principalmente de grupos. Deve ter sido nessa época que comecei a sentir prazer em ser individualista. Não, já o sentia, mas nessa época deve ter se fortalecido. O menino de 8 anos que, vendo Lula quis ser presidente quando crescesse morreu naquele momento e deu lugar a um egoísta feliz que detesta aglomerações e não vai a festas de família nem a casamentos.
Lembro-me do dia que li no livro didático de história sobre os crimes que Igreja praticava na Idade Média. Pobre Deus. Deixei de acreditar nele por causa da própria história da Igreja. Aos 12 anos eu era o único ateu que eu conhecia. Minha mãe sempre achou que fosse uma fase. Ela continua achando.
A única vez que quase deixei de ser ateu foi quando uma espírita rondou a minha vida. Espíritas assombram no máximo dois meses, mas em dois meses entendi o que era aquele sentimento que os poetas tanto tentam traduzir. Esvaiu-se tão repentinamente quanto apareceu. Foi apenas um espírito. Esse sentimento é uma coisa tão alucinante que corri o risco de crer em deus; é bom evitar. Estou evitando desde então.
A propósito, São Paulo é mais bonita nas noites de outono. Todo mundo sabe disso. É por amar demais essa cidade que hoje a odeio. Nem o amanhecer nem o pôr do sol mais bonito que já vi foram daqui. Aqui não ando de bicicleta, aqui não ando de roupas de banho, mas aqui é ainda é adorável. Minha lembrança mais antiga é a visão da estação República quando se está subindo as escadas da estação. Veem-se as duas palmeiras e ao fundo o edifício Itália. Lembro-me de falar para meu pai que eu já conhecia ali, que me lembrava daquela visão. Não tenho mais essa lembrança da lembrança.
As noites são sublimes no outono, mas na primavera a aurora é a mais bonita. O melhor mês é outubro, durante as duas semanas de Mostra Internacional de Cinema. Todo ano é a mesma coisa: a sessão acaba seis horas e a próxima em outra sala começa em meia hora. No deslocamento vejo o céu alaranjado e me dá uma vontade de, ao invés de entrar na sessão, ficar lá fora vendo o sol se pôr. Mas não o faço. E quando a sessão das seis acaba, o céu já está escuro. Viver é uma constante espera. E vivo a espera de três eventos em especial. São eles: o desfile da Mangueira, a Virada Cultural e a Mostra de Cinema. Dois desses momentos se passam em São Paulo.
Se existe algum em São Paulo que gostaria de ir novamente, apesar de impossível é o castelo Ra-tim-bum. Foi o primeiro filme que vi no cinema e seu cenário montado no Sesc Belenzinho foi uma das primeiras exposições que visitei. Quem me dera tivesse uma foto daquele dia... Do show dos Mutantes no Parque da Independência também não tenho nenhuma foto. Danem-se as fotos. Parece que as melhores lembranças não foram registradas. Por isso não tenho celular com câmera. As lembranças recentes que não fotografei têm sido boas. Devia ter passado menos tempo no Orkut, no MSN, no Twitter e no Facebook. Que lembranças guardar das horas perdidas nessas redes? Nenhum livro que li eu esqueci depois de ler. Poderia ter lido bem mais nesses vinte anos do que os escassos 110 livros que li na vida. 110, que vergonha... Tenho que excluir o Facebook e o Twitter. E esse blog principalmente.
Ainda não escrevi a obra prima que me estão cobando há muito tempo. Tem gente que cisma que eu escrevo bem e pede a obra prima. Aposto que se um dia ela sair será um texto melancólico (mais do que esse) e todos criticarão. Descerá do céu uma nave e os extraterrestres dirão que preferiam quando eu escrevia coisas engraçadas. Por que não escrevi essa obra enquanto tinha tempo? Com 20 anos não imagino que terei disponibilidade. Escrevo textos – igualmente elogiados, continuo não entendendo o porquê – sem graça, chatos para a faculdade. A cada nota de rodapé sinto que estou apunhalando a mim mesmo. Bem que poderia ser a academia um pouco mais engraçada para eu conciliar comigo mesmo.
Nunca diga que uma criança é gênio; elas podem se tornar no futuro o que eu me tornei: o mais medíocre dos gênios. Aos três anos aprendi a ler. Lembro-me de estar na casa dos vizinhos lendo em voz alta frases de calendários religiosos. Formava-se círculo em volta de mim para ver o exótico espetáculo. Na primeira série a professora insistiu que eu pulasse para a segunda. Fiz uma prova para passar de ano – ainda estava em junho – e só não passei porque a segunda série estava sem professor no momento. Por mais que minha professora insistisse que eu deveria passar para a terceira, minha mãe prudentemente impediu. Sempre fui chamado pelas visitas em casa de “gênio”, de “salvação da família”. Mas estou fracassando em tudo que eu faço. Qualquer coisa que um gênio faça que seja menos de genial é um fracasso. E sabendo desde os três anos que eu era um gênio, eu nunca me esforcei para me superar. Duh, superar o que? Eu sou um gênio! Por sorte me acostumei ao fracasso e não tenho ressentimentos.
Das vinte e quatro horas do meu dia, pelo menos dezoito eu estou com óculos. Não reclamo deles, por isso poucos imaginam o quanto eu detesto usar óculos. Da minha primeira armação sobrou uma prova de quanto meus dentes de leite eram fortes. Aquela armação gigantesca roxa na minha cabeça de seis anos era a imagem da desumanidade. Talvez por isso hoje eu despreze as pessoas que usam armações gigantescas. Elas não sabem o que é ser míope astigmático. Todas as armações estão guardadas. Assim como todos meus cadernos e... todos os meus fortes dentes de leite. Cada um, dentro de um tubo de filme fotográfico (coisa do século passado) com um papel informando que dente era e em que dia caiu. Os tubos dentro de um cofre de moeda. Quem guardou não foi minha mãe, nem meu pai, fui eu mesmo. Não estranharei se passar os restos dos meus dias trabalhando num arquivo.
Lembro-me que no natal de 2004 ganhei um globo terrestre, sonho de muito tempo. No meu aniversário de 10 anos ganhei um quebra cabeça do mapa-múndi. No aniversário de 11 anos ganhei três mapas, um do estado, um do país e um do mundo. (Aos 12 anos parei de comemorar aniversário. Amanhã completo 20 anos, não me deem parabéns por isso! Parabenizem-me quando conseguir estacionar um carro.) Do terço da minha vida que passei dentro de ônibus aprendi a ter senso de direção e nutri em mim um orgulho de jamais perguntar para alguém um caminho. Mesmo que esteja absolutamente perdido, perguntar onde fica tal lugar é a maior das humilhações. E não tenho problema em andar perdido sem rumo. Em toda cidade que conheço faço isso: desço no ponto final de um ônibus e ando horas a esmo. Garanto que é o melhor jeito de se conhecer um lugar. Além disso, aprendi a passar tranquilamente dias dentro de ônibus. E cruzar meu país de São Paulo a Natal ou cruzar país vizinho, da Ciudad Del Este a Encarnación foram experiências não menos que prazerosas.
20 anos. Tenho mais cinco anos de evolução física. Após o auge da minha forma humana só me restará aguardar o lento e gradual declínio a caminho da morte.  Olho para minha agenda e vejo que os dias estão cada vez mais cheios, os fins de semana cada vez mais comprometidos. Olho para a minha estante de livros e o pensamento na morte logo sobe a cabeça: não vai dar tempo. É o maior dos meus medos: não ter tempo de ler tudo o que eu quero, nem de viajar para onde eu quiser.
Isso não afeta meu estado de espírito de jeito algum. Quando digo que faz sete meses que não fico pra baixo e que triste mesmo jamais fiquei ninguém acredita. O que torna essa sociedade depressiva afinal se viver é tão maneiro? Com vinte anos já estou lamentando que só vá me restar sessenta. Não que depois dos vinte cinco a coisa fique tão divertida quanto é hoje, por isso o assombro. Mas o tempo é curto demais para ser levado pela tristeza. Talvez pelo desespero de que a cada dia que passa, tenho menos um dia para viver aqueça os ânimos. Poucos me entendem. Os que entendem, entendem os filmes do Woody Allen.
São 20 anos. Não são apenas 20 anos. Se fossem apenas, todos que me parassem na rua eu reconheceria. O fato de eu não conhecê-los me deixa consternado, afinal eles me reconheceram, então alguma lembrança, boa ou má eles tem de mim. Peço perdão por não ter uma lembrança sequer e fico de marcar um role, mas nem ao menos pego o telefone da pessoa. São tantas pessoas. Um dia ainda juntarei todas que estão na minha memória para um role. Pedirei as desculpas necessárias, agradecerei a quem tiver que agradecer, conhecerei quem não conheci ainda o bastante, abraçarei a todos. O espaço tem que ser grande.
Daí eu me lembro daquela lista que fiz quando tinha 15 anos com cinquenta coisas que eram para eu fazer antes de morrer. Nunca cheguei a compilá-la, afinal nunca decidi o que seriam 50 coisas de tamanha importância. Lembro-me apenas que a que seria a primeira da lista eu ainda não o fiz, que é passar um fax. O dia que eu passar um fax, poderei morrer em paz.

20 anos. De alguma forma valeram a pena. Nunca fiz ninguém chorar contando histórias da minha vida. Mas fiz rir, o que é bom. Mas fica aquele ensejo dramático que eu deveria ter aproveitado mais-alguma-coisa-sei-lá-o-que. O que me resta é continuar respirando e aproveitar mais os anos que vem pela frente. Enquanto eu conseguir andar a pé e escrever está tudo bem. E se tiver um Hunky Dory por perto para eu ouvir, melhor ainda. Envelhecer é uma parada muito maneira (raios, quem na minha idade escreve/fala isso?!), mas ter crise de meia idade na virada dos 19 anos para os 20 anos é uma parada muito desnecessária.

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