O
conto a seguir, por mais que pareça surrealista, é baseado em uma
situação verídica. Nomes foram trocados e locais foram ocultados.
Um
dos protagonistas desse conto cansou-se de contar tal história para
os amigos e por
tanto
adorá-la,
resolveu escrevê-la. Por ter se passado há três anos não há
exatidão nas passagens e diálogos, por isso escolheu
escrever em forma de conto.
“Cético, porém rindo,
pergunto: 'isso tudo aconteceu mesmo?'
'Dave, basta andar pelas ruas e
dizer olá para as pessoas. Tudo
acontece.'”
(Philip
Roth)
O
jovem casal aguardara a sexta-feira chegar para se encontrar. Naquele
meio dia ensolarado de outono, vestindo uniformes de suas respectivas
escolas, os colegiais se encontraram na estação de metrô mais
próxima de onde estudavam e rumaram para um grande parque que não
ficava tão distante de lá.
Chegando
ao parque atravessaram a extensão verde em busca de um lugar
tranquilo para sentar e namorar. Escolheram um ponto defronte o
grande lago, não muito distante das outras pessoas, nem tão
próximos ao ponto de serem notados.
Aconchegados,
fizeram planos. Estudantes de língua estrangeira queriam estudar
fora. Ela sonhava com o Canadá. Ele preferia o Velho Mundo e
resmungava que nas terras dos esquimós nunca encontraria tanta
beleza e história quanto na terra dos jacobinos.
Tão
entretidos estavam consigo mesmos que nem notaram a aproximação de
um sujeito malvestido e malcheiroso. Notaram-no apenas ao serem
abordados. O sujeito iniciou sua fala de uma maneira tão educada,
que mesmo prevendo o que aconteceria, o rapaz tomou simpatia pelo
homem.
-
Boa tarde. Permita que eu me apresente. Meu nome é Erasmo, vou pegar
na sua mão, mas não vou pegar na mão da sua esposa porque aprendi
na cadeia que não se pode tocar em mulher dos outros e eu saí da
cadeia terça-feira, mas qual é o seu nome, baixinho?
-
É Nalyd – respondeu o rapaz, inicialmente desdenhoso.
Perguntava-se mentalmente “como esse trouxa pode me chamar de
baixinho se estou sentado?”
-
Então Nalyd, como te disse, saí da cadeia terça-feira e vim pra cá
porque tenho mulher, mãe e filho e não dá pra conseguir emprego.
Eu vi vocês dois entrando no parque, vocês entraram por lá, eu vi,
vocês nem me viram né? Não foi por lá que vocês entraram? É...
eu vi, eu segui vocês. Eu vim seguindo vocês até aqui e sei que
vocês estão com esses aparelhos, celular, né? Eu vi. É o
seguinte, você vai me entregar esse que você tem aí no seu bolso e
só. É porque eu não vou levar nada da sua esposa não, porque isso
não se faz, eu só vou levar esse seu celular e eu não quero ter
que usar isso – e levantou a camisa mostrando um volume preso às
calças dentro de uma sacola plástica.
Quando
sozinho o rapaz já ouvira o início dessa conversa por diversas
vezes em diversos lugares. Sempre se safara arranjando algum meio de
não deixar a conversa chegar a esse ponto. Mas ali, pego
desprevenido, sentindo-se indefeso ao mesmo tempo responsável pela
garota não soubera como agir e deixara a coisa chegar a tal ponto.
Tudo até então tinha sido previsível, mas o diálogo logo tomaria
outras proporções.
-
Desculpa... eu não tenho nada, cara. Eu juro. Isso no meu bolso é
um lenço, olha só. – respondeu o rapaz tirando o brega e broxante
lenço de pano azul levemente sujo de secreção nasal.
Atônito,
o assaltante permaneceu em silêncio por alguns segundos e logo mudou
o tom, enchendo o rapaz de perguntas.
-
Eu to vendo que você é humilde, que você é estudante, você
estuda?
-
Sim.
-
É faculdade?
-
Não, escola ainda...
-
Onde você mora?
A
resposta – verdadeira – que o jovem deu provavelmente não
agradou o ex-presidiário. De um bairro distante viera o garoto. Sua
garota também era de longe, mas o nome do bairro dela não causaria
tanto espanto ao ser pronunciado quanto o dele. O assaltante
percebera, enfim, que o moleque idiota que tinha um lenço azul no
bolso em vez de um celular, mesmo tendo uma “esposa” tão bonita,
estava tão mal na vida quanto ele.
-
Ahhh, de lá? Sabe, eu conheço esse bairro, eu já fui lá muitas
vezes, mas eu conheci mais gente que é de lá quando eu estava na
cadeia. Olha essa tatuagem. Eu fiz na cadeia – estendeu o braço
mostrando uma inscrição tatuada, quase ilegível –. Tem muita
gente do PCC lá, eu tenho vários amigos que é do PCC. Tu mora
longe, heim, baixinho. Seguinte. Você é firmeza e é humilde, só
quer ficar de boa aí com sua esposa. Vamo fazer o seguinte. Isso
aqui não é mais um assalto, é um pedido de ajuda.
Isso
aqui não é mais um assalto, é um pedido de ajuda.
Seres humanos, com seus domínios linguísticos e capacidades
criativas conseguem criar obras de arte imortais. Citações espertas
saem de textos ou falas dos maiores intelectuais da história para
alcançar o boca a boca de quem aprecia literatura, tanto escrita
quanto oral. Qualquer pessoa que estivesse presente nesse diálogo e
ouvisse essa frase jamais a esqueceria. Realismo fantástico? Kafka
comeria um bife para criar uma citação dessas. Com certeza essa
oração permanece até hoje na mente do rapaz que deixara de ser um
assaltado e passara a ser um proeminente ajudante. Essa foi a
primeira frase imortalizada que o assaltante-pedinte proliferara
nessa ocasião. Sua súplica continuou:
-
Eu saí da cadeia terça-feira e minha mulher tá morando aqui perto,
num barraco com minha mãe e eu to precisando comprar leite pro meu
filho. Eu não consigo arrumar emprego e ainda por cima eu levei um
tiro hoje. Olha, isso aqui não é uma arma.
Essa
foi uma cena que quem tivesse visto teria duas reações: a) jamais
esqueceria cada detalhe; b) ficaria tão confuso que perderia o fio
da meada. O nosso jovem herói da história teve a segunda reação e
não teve certeza do que viu, mesmo tendo visto.
O
assaltante-pedinte novamente levantou a camiseta e mostrou o volume
que carregava na cintura. Abaixou a calça e a sacola expondo suas
tripas. Exatamente, suas tripas. Um ferimento muito feio e
malcheiroso, com sangue coagulado estava atrás da sacola escondida
na cintura do homem. Durante a bizarra amostragem, pedaços de carne
caíram no chão. O rapaz virara-se para a moça para confirmar se
aquilo que estava vendo era verdade. Infelizmente – ou felizmente –
ela olhava para o outro lado, aparentando não estar tensa. Se aquilo
era carne humana fruto de uma bala mesmo ou se era carne moída
comprada no açougue e posta ali com o propósito de conseguir ajuda
o rapaz nunca saberá. Qualquer hipótese pensada hoje não faz
nenhum sentido e naquele momento, naquela situação era impossível
exercer qualquer raciocínio.
-
É isso, é uma ajuda que eu te peço, me dá o que você tiver. Se
você tiver vinte reais eu deixo você sossegado com sua esposa
Quem
conseguiria pensar qualquer outra atitude naquele momento? Jurando
que em sua carteira tinha uma nota de cinco reais, o rapaz abriu a
mochila, pegou a carteira confiante e viu dentro dela uma nota de
vinte reais, a única por ali. Lembrou-se de ter trocado as notas
antes de sair de casa, deixando a nota de cinco na gaveta e a de
vinte na carteira. Relutantemente, pegou a nota de vinte e estendeu
para o assaltante-pedinte-baleado. A única coisa que o garoto queria
naquele momento é que o homem desaparecesse e para a discussão que
surgiu, respondeu as questões propostas pelo interlocutor sem saber
direito o que estava respondendo.
-
Baixinho, você quer me dar esse dinheiro?
-
Toma cara.
-
Não, mas é pra você entender, não é mais um assalto, é uma
ajuda. Você só me ajuda se você quiser.
-
Eu quero, toma aqui, é tudo o que eu tenho.
-
Olha, eu vou aceitar como ajuda.
-
Tá, mas da próxima vez muda o método.
-
Olha baixinho, olha aqui – apontando para a cintura misteriosa -.
Precisava disso aqui?
-
Ãh?
-
Se eu não falasse que tinha uma arma você nem teria me escutado.
Ninguém ajuda. Sabe o que é, baixinho. O ladrão é muito mal visto
pela sociedade.
O
ladrão é muito mal visto pela sociedade.
O
ladrão é muito mal visto pela sociedade.
Saberia o homem que pronunciou essa frase que toda a carreira
acadêmica do garoto seria assombrada por essa oração de cinco
palavras, um artigo, um verbo e uma preposição? Quantos pensadores
já não escreveram teses e artigos problematizando a sociedade
brasileira tentando entender os fatores e signos sociais
contemporâneos? Erasmo em uma frase sintetizava muito sobre a
sociopolítica. Alguém já foi mais conciso? Em apenas um
assalto-pedido de ajuda, aquele homem já se tornaria um clássico
como poucos, navegando desde o realismo fantástico até a
sociologia, tudo isso com uma bala no tórax (ou meio quilo de carne
moída na cintura?). Mas Erasmo continuou sua justificativa:
-
Eu conheço a realidade, eu estive preso, se eu peço ninguém ajuda,
você não ajudaria, ajudaria?
-
… eu não sei. — Ele sabia que não ajudaria. Não comprava nem
caneta de instituição evangélica contra drogas. Não fazia de
má-fé. Era por sincero pão-durismo mesmo. A personalidade sovina
do jovem não cabe nesse conto, mas é sabido que muitas vezes o
rapaz deixara de ajudar a si mesmo, preferindo ficar o dia todo sem
comer a gastar com comida fora de casa. Ajudar um maltrapilho num
parque, que usaria seu dinheiro doado pro “o leite do filho”
para comprar crack então? Impensável.
-
Baixinho, eu estou baleado e esse dinheiro é pra ajudar minha
família, mas só aceito se você quiser de verdade me dar.
-
Tó, tó.
Finalmente
o homem pegou a nota do mico-leão-dourado nas mãos. Ainda fez um
último pedido para Nalyd:
-
Olha, eu vou sair e você me promete que não vai gritar pra nenhum
guarda, eu só quero ir embora.
Nesse
instante, pela primeira vez desde que o homem chegara, Nalyd olhou ao
redor. Não estava tão longe das outras pessoas. Poderia ter
gritado, poderia ter corrido, poderia ter chutado o homem para dentro
do lago. O pretérito do futuro sempre aparece quando o episódio
chega ao fim. Mas não. Apenas concordou com o homem que, desarmado,
levara seus suados vinte reais.
O
homem saiu mancando, mas com certa velocidade. Para o garoto, os
passos foram lentíssimos. Ficou observando o homem se distanciar,
olhando para trás a cada dois passos, com medo dele se levantar e
correr para o guarda. Até o homem desaparecer parque adentro pareceu
demorar uma eternidade. Quando por fim Erasmo sumiu de vista, a
garota, que permanecera calada durante todo o ocorrido pronunciou
suas únicas palavras:
-
Essa foi a cena mais bizarra que eu já vi na minha vida.
Tamanha
a bizarrice do episódio, passado o fim de semana, a cena ganhou um
epílogo. Na segunda-feira, após a habitual aula, o garoto recebeu a
mensagem da garota lhe dizendo que encontrara vinte reais na rua. Era
a primeira vez que isso lhe acontecera. Seria uma materialização
dos ditados religiosos sobre ajuda? Ainda que fosse, não deu tempo
de se concretizar. Combinaram um cinema no domingo para gastarem
aquele dinheiro que, segundo a garota era de ambos, mas terminaram
antes disso, virtualmente, fugazes como relacionamentos
contemporâneos são. O garoto nunca mais soube dela. E nunca
recuperou aqueles vinte reais.
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